quinta-feira, outubro 26, 2006

Servidão voluntária

Maria Sylvia Carvalho Franco
FSP, São Paulo, quinta-feira, 26 de outubro de 2006

MILÊNIOS TECEM a fortuna desse oxímoro, indigitando atos vis: covardia do guerreiro, violência do demagogo, malefícios do tirano, blandícia da massa. Na Renascença, essa figura foi evocada em leque, embora incautos a atribuam "pela primeira vez" a La Boétie. Meio século antes, Erasmo recolheu-a no bestiário que satiriza a apologia da ignorância e o malogro do arbítrio. A abelha, irrefletida, próxima à natureza, é insuperável ao construir edifícios e repúblicas. O cavalo, afim ao homem, mimetiza-o e partilha sua inteligência, sentimentos e miséria: na ânsia de vencer, ambos se esfalfam, batalham, forcejam e, por fim, golpeados, comem pó. A ele, mil suplícios: freio, espora, chibata, rédea, toda a tragédia de uma servidão aceita voluntariamente. Existências ínfimas -de mosca, peixe, rã, esponja-, porém livres, são melhores. Quem, dotado de força, discernimento e arte, deixou-se escravizar, anuiu à pior sina.
No crivo do intertexto, a República. Nela, a erosão democrática acentua o corte entre ricos e pobres, põe delinqüentes em cargo público, gera gula política, violência, mentira, demagogia, perjúrio, garrulice, boato, lisonja, soberba e corrupção. Findo o processo, a liberdade converte-se em tirania: a insegurança clama pela figura do protetor do povo, o Um solitário, que, sentindo-se ameaçado, recorre à guarda do corpo, força armada. Nesses regimes, invertem-se os valores: a vergonha é dita loucura, e a prudência, covardia; ordem e comedimento viram rusticidade e avareza; o pródigo torna-se magnânimo, e o covarde, destemido. Aguda ironia distorce o respeito à lei e à autoridade que a garante, transfigurando-o negativamente em servidão voluntária.

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