domingo, dezembro 23, 2007

O Brasil e os brasileiros

O Brasil e os brasileiros
Eliane Cantanhêde

FSP, São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007
BRASÍLIA - O Brasil vai bem, obrigada, depois de FHC e de Lula. Tá certo que não chega a avançar tanto quanto os parceiros do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), mas é a 10ª maior economia do planeta, segundo o Banco Mundial.
O país produziu US$ 1,585 trilhão em 2005, o que corresponde a 2,88% das riquezas geradas no mundo e praticamente metade de tudo o que a América do Sul gerou. Não é pouco. Aliás, é muito.
O problema é que o Brasil dos brasileiros não está nem perto disso. É o último no ranking de países de alto desenvolvimento humano e está entre os lanterninhas da educação de jovens (em leitura, matemática e ciências, que são fundamentais).
É uma conta que não bate. O país produz riquezas, mas para onde vão essas riquezas?
Os brasileiros parecem entregues não só ao descaso do Estado mas à sanha assassina de agentes do Estado. Todos estão à mercê da violência. E os mais pobres e mais frágeis, à mercê da violência do Estado.
O ano termina com perplexidade e dor diante da história de dois adolescentes brasileiros: a menina que foi jogada por uma delegada e mantida por uma juíza numa cela com dezenas de homens no Pará e, agora, o menino suspeito de furtar uma moto, preso pela Polícia Militar na própria casa e assassinado em Bauru, próspera cidade de São Paulo, o mais desenvolvido e sofisticado Estado do país.
Não bastasse, esse jovem foi morto depois de 30 choques elétricos -no rosto, na orelha, no tórax, no saco escrotal, no coração. Uma tortura bárbara que escandalizava o mundo durante o regime militar brasileiro e deixou profundas marcas na alma e na história do país.
Tantos anos depois da ditadura, o Brasil continua entre as dez maiores economias do mundo, lanterninha na educação e capaz de torturar jovens em suas cadeias, bem debaixo do nosso nariz. O Estado continua algoz. E nós, omissos. [elianec@uol.com.br] (Foto: aqui)
[Acesso para assinantes da FSP: aqui.)

Cultura e violência

Cultura e violência
José Padilha

TENDÊNCIAS/DEBATES
FSP, São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007
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Todo dia, dezenas de brasileiros são asfixiados em sacos plásticos, submetidos a choques elétricos. Como reagimos a tal brutalidade?
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TODA NOITE , milhares de brasileiros não conseguem dormir por falta de espaço. Eles vivem em celas superlotadas, projetadas para três ou quatro pessoas, mas ocupadas por mais de 20. A maioria está doente e sofre de distúrbios mentais. São mal alimentados e subjugados por organizações criminosas. E estão sob a tutela do Estado.
Todo dia, dezenas de brasileiros são asfixiados em sacos plásticos, submetidos a choques elétricos, espancados. São jovens favelados, muitos deles traficantes que foram capturados por agentes do Estado, policiais civis ou militares.
Neste ano, de acordo com as estatísticas oficiais, mais de 1.300 jovens foram mortos por policiais no Estado do Rio de Janeiro. Em São Paulo, cerca de 500. A maioria deles com sinais inequívocos de execução. Para ter uma idéia de quão estarrecedores são esses números, nos EUA, um país que tem 300 milhões de habitantes, a polícia mata cerca 200 pessoas por ano. O que nós brasileiros fazemos ante tamanha brutalidade? Infelizmente, acho que a resposta é muito pouco ou quase nada. Não nos revoltamos. Não organizamos protestos nem marchamos em direção ao Palácio do Planalto. Aceitamos a violência do Estado e de seus agentes com estranha passividade. Será que não nos importamos com os direitos humanos?
Postas assim, essas questões parecem pertencer exclusivamente ao campo da ética. Todavia, tenho a impressão de que a forma pela qual reagimos à violência tem uma forte relação com a própria existência dessa violência. Suspeito que a nossa passividade perante a violência do Estado seja uma de suas causas. (Foto: aqui)

Cultura e violência

A antropologia evolutiva parece corroborar essa tese. O comportamento humano foi moldado ao longo de milhares de anos de evolução. Na maior parte desse período, vivemos em pequenos grupos sociais, as tribos. Eram grupos em que todos os indivíduos se conheciam mutuamente e precisavam cooperar para sobreviver. Por isso, muitos biólogos defendem a idéia de que a cooperação e a compaixão, instintos que se opõem à agressividade, evoluíram para operar só entre indivíduos de uma mesma tribo, indivíduos que se conhecem.
Para tais biólogos, esses instintos não operam fortemente entre desconhecidos. Diz o famoso zoólogo Desmond Morris: "Uma relação despersonalizada não é uma relação biologicamente humana". E Edmund Wilson, professor de Harvard: "Do ponto de vista da biologia, o que precisa de explicação é a paz, não a guerra". (Foto: aqui)

Cultura e violência

A julgar pela forma como reagimos à situação da segurança pública no Brasil, Morris e Wilson têm razão. A maioria de nós não conhece pessoalmente as vítimas usuais da violência no Brasil, que são miseráveis e favelados. Talvez por isso não nos importemos tanto assim com as violações de seus direitos humanos. A coisa muda de figura, claro, quando a vítima é nosso parente ou vizinho. Aí a biologia entra em campo e ficamos revoltados a ponto de protestar ostensivamente. Mas, nesse caso, vale notar, não protestamos por razões culturais, mas sim por instinto.
Se é verdade que não temos fortes instintos biológicos de compaixão e cooperação para com indivíduos que não conhecemos, como é que algumas sociedades conseguem controlar a violência em geral e a violência do Estado em particular?
Creio que existe um forte componente cultural associado ao controle da violência e que este controle funciona melhor onde existe uma ética social que valoriza o respeito ao indivíduo e as liberdades individuais. As reações sociais à violência do Estado não parecem se fundar nas idéias de coletividade e cooperação, mas na idéia de que os indivíduos não devem tolerar um Estado que pratique violência contra os seus cidadãos sob pena de eles serem a próxima vítima.
Isso explicaria por que os Estados que se constituíram a partir de idéias totalitárias associadas à coletividade foram, ao longo da história, muito violentos. Vide a China de Mao Tse-tung, a Alemanha nacionalista de Hitler ou a União Soviética de Stálin.
Por outro lado, os Estados modernos que aliaram a democracia ao respeito ao indivíduo, como Inglaterra e França, foram muito menos violentos. Se esse raciocínio está correto, o problema da violência urbana no Brasil tem um forte componente cultural e está associado ao fato de não termos uma tradição explícita de respeito aos direitos e às liberdades individuais.
Nesse cenário, podemos imaginar que a grande interferência dos governos brasileiros na economia, a alta carga tributária que pagamos sem protestar e a nossa grande tolerância com a corrupção tenham muito a ver com a morte do garoto de 15 anos que tomou 30 choques elétricos pelo corpo e com a prisão da adolescente em meio a homens no Pará -ambos sob a tutela do Estado. [JOSÉ PADILHA, 40, é cineasta, diretor dos filmes "Ônibus 174" e "Tropa de Elite".] (Foto: aqui)

Senado: Oportunidade perdida

Oportunidade perdida
Luiz Leitão
detudoblogue.blogspot.com

Depois de sangrar durante meses a fio por causa da hesitação de seus integrantes em julgar o ex-presidente Renan Calheiros (PMDB-AL), a credibilidade do Senado Federal deverá continuar anêmica com a eleição do senador Garibaldi Alves (PMDB-RN) para a presidência daquela Casa.
Suas excelências perderam a oportunidade de pôr no comando do Congresso o senador gaúcho Pedro Simon (PMDB-RS), veterano de 25 anos, profundo conhecedor dos anais da instituição e célebre por sua postura ética. Mas os leitores certamente já ouviram falar de gente que foi preterida em processos de seleção em empresas porque eram "superdimensionadas" para o cargo.
Certamente foi isto o que aconteceu quando 68 entre 78 senadores julgaram que Garibaldi Alves, suspeito de desvio de recursos nas eleições de 2002 (Folha de São Paulo, 12/12/07) e de ser sócio oculto em emissora de TV (Inter TV, antiga Cabugi, repetidora da Rede Globo no Rio Grande do Norte), o que é proibido pela Constituição, mas que a absolvição do senador Renan Calheiros acaba de atestar não ser nada de mais, - até porque "todo mundo faz" -, está mais de acordo com os padrões atualmente vigentes naquela Casa. Ainda que nada venha a ser provado a respeito dessas acusações ao novo presidente, conviria neste caso invocar a questão da mulher de César.
Mas já vai longe o tempo em que a opinião pública tinha o condão de influenciar a conduta de nossos parlamentares, porque se assim fosse o Congresso estaria hoje em outro patamar ético.
Garibaldi, escolhido com o aval do presidente Lula, fez um belo discurso de posse - "Convoco todos a partilhar comigo a árdua missão de devolver ao Senado, perante ao (sic) País, toda a credibilidade de sua trajetória histórica" "Chego à presidência em um momento traumático para a Casa com os últimos acontecimentos que levaram o Senado a se aproximar de limites que jamais poderiam ser ultrapassados, sob pena de fraturar a imagem da Casa junto à opinião pública" – e não faltarão oportunidades para que a veracidade de suas palavras seja posta à prova.
O Senado perdeu a oportunidade de fazer jus a um "upgrade" em sua imagem. Ficou provado que presidi-lo nas atuais condições não é coisa para homens como o petebista Jefferson Peres ou pemedebista Pedro Simon. Este último, teria dito o presidente Lula, que não costuma apreciar quem se lhe opõe, "uma pessoa não confiável", e pode-se dizer que para algumas das pretensões do presidente da República parlamentares como José Sarney, Jader Barbalho, Romero Jucá, o velho e bom Renan Calheiros e outros de semelhante quilate são mesmo muito mais confiáveis.
Entretanto, neste institucionalmente melancólico final de ano, bem ou mal, com ou sem a aprovação do tributo CPMF, e apesar da rarefeita oposição que o governo enfrenta dentro e fora do Congresso, as dificuldades enfrentadas pelo governo durante a batalha campal que se desenrola no Senado, menos por discordância dos protagonistas do embate a respeito da conveniência deste imposto e mais pela inesgotável fome do PMDB por cargos na máquina de governo, mostram que Lula, ainda que hábil no manejo do verbo e da verba, se perde quando exposto à adversidade, crescente à medida que o tempo for consumindo os três anos de mandato que lhe restam.
Enfim, nesta atribulada troca de praticamente seis por meia dúzia na sua presidência, o Senado se iguala à Câmara cuja legislatura que terminou ano passado foi considerada a pior de todos os tempos. Mas o recorde, pelo andar da carruagem, será quebrado. [luizmleitao@gmail.com]
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quinta-feira, dezembro 06, 2007

Falves Silva e o relevo do Poema Processo

Nas comemorações dos 40 anos do Poema-Processo, uma criação poética atenta à mentalidade e à "performance" do final dos anos 60 que se projetou (no clima de 1968), no início dos anos 70, conforme o crítico Antonio Sérgio Mendonça, Professor Doutor titular e pesquisador do Corpo Permanente do Mestrado em Arte da Universitária Federal Fluminense (UFF), que vê no movimento "uma das respostas ao masoquismo cultural que diz ter sido essa década ‘um século de trevas’, investindo no receptor, avançando na suposição herdada do Futurismo Russo e tematizada pelo Formalismo (Russo) do estranhamento, distinguido, qual Jakobson que a incorporou, poesia de poema (poética)", o Radar Potiguar entrevistou Falves Silva, hoje com 64 anos, e que participou da eclosão do movimento, em 1967, em Natal.
Ao lado de Moacy Cirne, nascido em São José do Seridó, Jardim do Seridó, em 1943, professor da UFF e autor de vários livros sobre histórias-em-quadrinhos (o primeiro deles em 1970), aliou-se aos fundadores do poema/processo e participam de uma exposição durante o Encontro Natalense de Escritores, ocorrido entre 22 e 24 de novembro no Largo da Rua Chile, na Ribeira, a fim de marcar a data.
A seguir, trechos da entrevista de Falves, concedida ao jornalista Paulo Augusto, editor do Encartes, caderno de cultura do Jornal de Natal, publicada na edição do JN de 03.12.07. (Foto: Falves Silva em arte de Antonius Manso.)

alves Silva e o relevo do Poema Processo

RP – Essas comemorações de 40 anos do Poema Processo se dão durante todo o ano de 2007?
Falves Silva - Eu, particularmente, de 10 em 10 anos faço essa comemoração. Eu, particularmente. Então, em 77 eu fiz uma comemoração, junto com Anchieta Fernandes e J. Medeiros. Em 87, fiz junto com Dácio Galvão. Em 97, fiz junto com Bianor e Fábio di Ojuara. E, agora, em 2007, estou fazendo uma homenagem a Álvaro de Sá, por ocasião do Encontro Natalense dos Escritores, promovido pela Capitania das Artes e Prefeitura do Natal, entre 22 e 24 de novembro, no Largo da Rua Chile, que contou com uma exposição sobre o Poema Processo). Álvaro de Sá é um poeta carioca, já morreu, é um teórico, do início do movimento. Teórico e produtor. É um dos teóricos do movimento. Além dele ser embasado dentro do movimento, faz a teoria e a prática. A prática do poema. E a prática teórica. O que eu estou fazendo são as versões. A questão do poema processo... Enquanto na literatura tradicional se faz a tradução, no poema processo se faz a versão. O poema processo permite a versão. Então, o poema processo só se concretiza com uma versão do leitor. Daquele que está recriando o trabalho do outro. Quando ele encontra o consumidor dele mesmo. Ele será sempre consumido. Nunca tem um estágio de parar. O poema processo sempre deixa o espaço para que o outro crie. Para que o leitor dê continuidade a um determinado poema de um determinado artista, de um determinado poeta. Eu estou fazendo essa homenagem a Álvaro de Sá, especificamente, mas estou também fazendo versões de Anchieta Fernandes, de Moacy Cirne, e minhas mesmo. Porque eu vejo o seguinte: os poetas têm medo de interferir na obra do outro. E a obra de arte deve ser interferida por outro, pelo poeta seguinte, pelo artista seguinte. Esta é a minha opinião particular, mas está dentro da teoria do poema processo, que é permitido perfeitamente isto.
Você não pode entender um poema processo sob o ponto de vista da literatura tradicional. Você tem que entender o poema processo sob a teoria do poema processo. Há uma diferença. "Ah, eu vou entender o poema processo pela linguagem tradicional." Você não vai entender. Como você também não pode entender o cinema pela via tradicional. O cinema é uma arte 95% visual. O texto das imagens é relativamente pouco. O texto de um filme é coisa pouca. A imagem é o que conta mais. Como na fotografia. A fotografia é 100% imagem. O poema processo ainda tem recurso de palavra, mas ele tem um apelo muito forte no signo não verbal. Na não-verbalidade. (Foto de Antonius Manso: Falves Silva.)

Falves Silva e o relevo do Poema Processo

POLÍTICOS, PALAVRA E EMBOTAMENTO
O uso da palavra, por exemplo, por políticos. Quem usaria mais a palavra? Getúlio Vargas estragou a palavra. Leonel Brizola também é um cara legal. Quantos políticos não estragaram a palavra? Collor de Mello estragou a palavra à exaustão. Foi presidente da República. E foi deposto. E essa coisa da palavra, essa exaustão da palavra, quando chega a ela não ter mais nenhum significado, politicamente nem poeticamente. O poeta só pode usar a palavra agora se for uma coisa com grande exclusividade. Um poeta de grande categoria. Fica a verborragia, aquela coisa repetitiva, redundante, secular. Nós estamos no século 21, o homem está fazendo piquenique no espaço. Está se preparando para ir a Marte. Então, a imaginação do homem é a coisa mais importante que nós temos. O Universo vive em desenvolvimento. Se você pára esse desenvolvimento na mente humana, embota a nação. É o que está acontecendo agora. Todo dia cai um avião. Todo dia tem um levante numa cadeia pública. E isto é embotamento da mente humana.
GLAMORIZAR A POBREZA
RP - O homem entrou num oito e aí ficou preso?
Falves - Circulando. É o circular. É Vico. Jean-Baptiste Vico é quem falava sempre isto. É circular essa falta de informação no Brasil. Por exemplo: o excesso de folclore. Folclorizam demais o nosso subdesenvolvimento Glamorizam o folclore, e aí você glamoriza a pobreza. Quando você glamoriza o folclore, você está glamorizando a pobreza. Como se você dissesse assim: "Olhe, a cultura de pobre é bumba-meu-boi. E a cultura erudita está dentro da universidade. Não se metam, não. Aqui é outra coisa." E todos os governos, em toda parte do mundo, se faz isso. Não é só aqui no Brasil. Então, esse subdesenvolvimento é que vai, inclusive, levar a uma conclusão drástica: o Brasil pode se preparar. Eu sou premonitor (premonitório): Vai haver uma revolução nesse Brasil, se os governos não se preocuparem com a educação imediata. É uma coisa de imediato. A educação é primordial. Se não houver uma preparação para uma educação nas bases, no ensino fundamental, vai acontecer uma rebelião. Com certeza. Aliás, essa rebelião que já está acontecendo, que é a rebelião velada nas cadeias públicas de todo o Brasil. E quem quer que estude a história das revoluções (sabe): todas as revoluções começam nas cadeias.
CASO ESPECIFICAMENTE DO NORDESTE
Esse é que é o embotamento da mente. No nosso caso especificamente do Nordeste. Nós. Eu acho que... Existe uma cultura erudita e o folclore deve ser preservado, com certeza, mas também não vamos glamorizar esse subdesenvolvimento em nome de um bumba-meu-boi qualquer. A poesia, especialmente, é uma das artes na qual é necessário que o poeta desenvolva a sua mente. Você não pode parar. O ser humano não pode parar. A mente não pode parar. Então, há continuidade. A mente. Tem que haver continuidade para a vanguarda, que não é a mesma vanguarda dos anos 60. É uma outra vanguarda que vai surgindo, que vai se multiplicando. E vai se auto-superando. É um outro produto. É um produto de um produto, que será um outro produto no futuro. O ser humano tem que usufruir disso.
Natal não é mais uma província. Natal já é uma metrópole. Natal tem um milhão de habitantes. E isso, de um modo geral, Natal já é uma metrópole. Inclusive uma metrópole sofisticadíssima. Natal sempre foi sofisticada. Desde o (texto) "Natal daqui a 50 anos", de Manoel Dantas, no início do século passado. Isso já era um prenúncio daquela modernidade, que viria. E, por ser uma cidade, naquele período, próxima da Europa, tudo que acontecia na Europa chegava por aqui mais rápido. Por Natal ser um porto - especificamente um porto, onde os navios chegavam por aqui. Tanto é que existe uma frase de (historiador) Lenine Pinto, em que ele prova por A + B que o Brasil foi descoberto aqui, em Touros, e não lá na Bahia.
RP - O caso do pobre. A gente está falando da educação, das escolas que não são cuidadas, e tudo. Mas o pobre, mesmo assim, ele está dentro de uma fase evolutiva, ele acompanha o crescimento e a evolução da ciência...
Falves - Ele está ciente da tecnologia. Ele está vendo. O pobre, por mais desprovido que ele seja, ele sabe que tem a televisão, tem o computador, ele pode acessar um computador numa lan house qualquer. Que tem o celular e toda a tecnologia. Então, ele está observando essa disparidade, e a ausência da educação. Mas ele está observando que o poder continua acima de toda a pobreza. Isso não é só no Brasil, é em Bangladesh, em toda parte do mundo.
O computador não veio diminuir a pobreza. Ele veio multiplicar a pobreza. Multiplicar a riqueza, por um lado, e a pobreza por outro, separando as duas fases. É bem verdade que a tecnologia ajuda na cura de muitas doenças, mas essa doença não é estatal. Só quem pode pagar a cura de um câncer é quem tem o poder aquisitivo maior do que quem ganha um salário mínimo. Como no meu caso. Eu ganho um salário mínimo.
RP - Aí esse pobre entra talvez em desespero.
Falves - Ele não só entra em desespero, mas ele vai entrar em revolta. Em seguida, ele vai entrar em revolta. E isto já está acontecendo. É por isto que continua os assaltos em toda a cidade. Basta você ligar os jornais, na televisão, que você vê diariamente essa continuidade da violência.

Falves Silva e o relevo do Poema Processo

EVOLUÇÃO DO POEMA PROCESSO NOS 40 ANOS
RP - Dentro desse período de 40 anos, como você viu a evolução do poema processo?
Falves - A evolução do poema processo. É preciso lembrar que nós estamos em plena ditadura militar, 1967, onde a expressão da arte foi podada. Toda ela foi podada, em todos os aspectos. A música foi podada, a poesia foi podada, a pintura, o cinema. Você teria que dar um outro contexto para ir de encontro a determinadas. O poema processo surgiu exatamente no período de uma revolta. Era uma revolta universal. Você vê que os Beatles estavam surgindo no mesmo período, o Cinema Novo, no Brasil; o "make love, not war"; a liberação das mulheres. Tudo isso tem uma contribuição universal. Neste momento ainda não tinha televisão aqui em Natal. Mas a gente estava sabendo o que acontecia em torno do mundo. Então, nós, através de Moacy Cirne, que foi quem fez o elo entre Natal e Rio de Janeiro, Moacy trouxe a teoria da poesia concreta em 66. No ano seguinte, a gente eclodiu esse movimento do poema processo, em parceria com o pessoal do Rio de Janeiro, para que esse movimento desse uma espécie de continuidade à poesia concreta, que tinha surgido dez anos antes, em São Paulo. Porque, na realidade, o surgimento do poema processo vem de uma divisão de Vladimir Dias Pino e Álvaro de Sá, no Rio de Janeiro. Já lá no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro e São Paulo não casam muito. Todo mundo sabe disso. E a história da literatura brasileira sabe desses pormenores. Então houve também uma briga. Quer dizer, uma briga, não. Uma briga não, uma cisão, entre os poetas de São Paulo e Vladimir Dias Pino, que morava no Rio de Janeiro.
Então, esse é um momento histórico, por sinal. O único movimento histórico no Rio Grande do Norte, planejado e planificado, de uma maneira esquemática, como teria o Futurismo, como teria sido o Dadaísmo, como teria sido o Destill, da Alemanha, ou a Bauhaus e, ele foi estruturado. Como também foi estruturada a Semana de Arte Moderna de 22, que é de onde vem, de Oswald de Andrade, especificamente, essa tendência dessa modernidade. Com o cinema. Eu, pelo menos, toda a minha universidade foi o cinema. Então, o cinema é imagem pura. Fotografia. O jornal, o jornalismo. A imagem, com a sua força.
E toda essa tentativa de descoberta das artes. Que é, por exemplo, o Charles Pierce, que é o iniciador da Semiótica, que está em cima do cinema, está em cima da poesia visual. Está em cima da não-verbalização, o excesso de verbalização. Isso não quer dizer que a palavra não tenha nenhum significado, não. Não, ela tem um significado, mas é preciso usar adequadamente. A palavra, na realidade, só pode ser usada por poetas de grande qualidade. Por exemplo, João Cabral de Melo Neto é um grande poeta. Isso é inegável. Ele sabe como colocar a palavra no contexto certo, na hora certa. Como os Irmãos Campos, da Poesia Concreta, Décio Pignatari. Todos eles têm a sua força de expressão. O Poema Processo é uma dissidência - essa é a minha opinião particular, talvez outro não tenham a mesma opinião -, mas eu acho que o poema processo vem da poesia concreta. Isso aí é inegável. Eu mesmo continuo gostando dos poetas que fazem a poesia concreta.

Falves Silva e o relevo do Poema Processo

RP - Fale sobre a palavra.
Falves - A palavra é necessária no aprendizado do alfabeto. Para você saber se conduzir. Para você se situar no mundo de hoje. Mas a palavra não responde artisticamente. Não responde mais as necessidade, frente à tecnologia avançada. Por exemplo, o cinema, a televisão, os clipes e o celular, que você faz filmes hoje. Você pode fazer um filme hoje com o celular. Cada pessoa é um cineasta hoje. É só você saber conduzir, e ter um direcionamento. E aí já vem Marshall McLuhan: a aldeia global. Chegamos á aldeia global. Chegamos no século 21, à aldeia global. Agora, com essa aldeia global e o poder... Você já leu "O Admirável Mundo Novo"? Nós estamos no admirável mundo novo, dominados por um indivíduo. Por uma cadeia, um sistema. Onde você é um número. Hoje mesmo passou na televisão um camarada que foi dado como morto. Mas ele está vivo. O número superou o indivíduo. Ele está vivo, mas está "morto" para o sistema. E a burocracia que se faz em torno disso é que é o grande entrave da humanidade. Nós precisamos nos desburocratizar, e fazer com que a humanidade entenda que a visão. Por exemplo. Eu vejo sempre o seguinte: o ser humano, ele primeiro vê. Depois, começa a falar.
RP - Dentro do que você está falando, considere o seguinte: eu escrevo um livro, e aí ele não tem público leitor. Pela falta da educação e pela falta da grana para comprar. São dois bloqueios. Agora, com a poesia processo, vocês não utilizam exatamente a imagem?
Falves - É o seguinte: a contradição sempre existiu na humanidade. Então, essa contradição existe agora. Por exemplo: eu acho que o cinema e a televisão é muito mais democrático. Hoje, qualquer pessoa tem uma televisão, seja lá no Amazonas, assiste a novela das 6 e a novela das 8. Então, globalizam tudo. Ele vai compreender o que está rolando naquele sistema lá, mas também vai compreender o seguinte: Ana Maria Braga faz aquele coquetel todo dia de manhã, um verdadeiro bacanal de comida, enquanto uma comunidade está passando fome. Ela assiste na televisão, e diz: "Mas, porra, que negócio é esse?" E ele com fome, comendo rapadura, comendo farinha. Porque não vá pensar, se você for aqui pra Macaíba ainda tem gente que ainda come bredo, folha, pois não tem dinheiro pra comprar. Então, nessa civilização, a contradição entre a tecnologia e a liberdade do indivíduo. O ideal seria a liberdade do indivíduo. Vamos todos ser felizes. Aí seria o ideal. Mas essas contradições existem em toda parte do mundo. Enquanto folclorizam, o excesso de folclore. Eu estou falando isso, porque estive lendo uma matéria, sobre uma pessoa que fez uma tese agora, em São Paulo, e saiu há umas duas semanas atrás uma matéria. E ela tinha razão. Folclorizaram tanto. Glamorizar o folclore é glamorizar a pobreza. Você está enfatizando: não vamos ser o bumba-meu-boi.
RP - Está conservando...
Falves - É o conservador. O conservadorismo. Não há um avanço tecnológico. E é o que nós precisamos. É a tal coisa: o homem está fazendo piquenique na Lua, mas está comendo farinha e rapadura aqui em Macaíba. Sem saúde, sem educação. E é ele que paga o imposto. É preciso que o povo brasileiro entenda que ele é quem é o dono do país. E não um determinado governador, um determinado presidente.
RP - Como ficaram seus contatos? Como você mantém contato e articulação com os grupos da poesia concreta e do poema processo?
Falves - O problema é que, naquele momento, quando surgiu, em 67, havia ilhas isoladas. Mas, em toda parte do mundo existiam ilhas que estavam, eram focos de artistas que tinham o mesmo princípio. O princípio da visualidade. Da arte visual, que talvez tenha vindo com a fotografia e com o cinema. (Foto de Paulo Augusto: Falves Silva)

Falves Silva e o relevo do Poema Processo

O EROTISMO NA OBRA DE FALVES
RP - Uma coisa que você usava muito, e que ainda usa, gosta muito, é o sexo. A expressão sexual.

Falves - É isso. É porque o erotismo libera. A liberação do mais forte ego do indivíduo é o erotismo. Em alguns dos meus trabalhos, eu procuro. A respeito disso, a Yoko Ono esteve agora em São Paulo e foi barrada uma obra dela onde tinha uma vagina. E ela disse: "Eu não sei por que as pessoas condenam tanto uma vagina, e todo mundo saiu de uma." Por que condenar? Por que não ver, né? Ela disse isso numa matéria da Veja, na semana passada.
RP - Vamos falar idealmente. Porque, quando o artista chega ao poder, ele então tem condições de fazer as coisas. Então, idealmente, como seria essa comemoração para você?
Falves - Pra mim, especificamente, já houve um prêmio. Eu já recebi. Eu recebi um prêmio, de dois amigos aqui na cidade, que foi Ivan Júnior, da Off-set, e Alexandre Oliveira, da Arte & Argumento, que fizeram, no início desse ano, um calendário, onde eu passei o ano todo fazendo exposições. Então, isso pra mim é um prêmio superior. Por exemplo, esse prêmio que o Diário de Natal dá (Prêmio Cultura), eu acho que é uma besteira. Deveria era mandar o artista pra São Paulo, passar uma semana em São Paulo, passar uma semana em Nova York nos museus, estudando. Porque é bancado pela Petrobras, pela Cosern, pelo poder municipal, pelo poder estadual e pelo poder federal. O artista merece ser reconhecido na sua cidade. E não dar uma estatueta, que não tem nenhum significado. O Oscar, pelo menos, tem um significado, que é de ouro. Mas, como é que você vai receber uma estátua de bronze?
RP - E ele fica ali, no mesmo canto dele.
Falves - Fica no canto dele. Este é o chamado "consolo para rola murcha". Você já ganhou o seu prêmio, você já tem o seu significado. E tem uma coisa. Eu estou falando sobre o Diário de Natal, mas o problema é o seguinte: o Diário de Natal passa dois meses com os empresários falando sobre o prêmio, e o artista só vai aparecer lá no fim. Vai aparecer o cara que ganhou. Mas se passaram dois meses falando. Dois meses antes e dois meses depois.
RP - E a obra dele às vezes nem é conhecida.
Falves - Nem é conhecida. Ninguém nem se liga. Só sabe o nome. E quem tem, tem. Quem não tem, não tem. É chamada de obra única. O objeto único. A pintura, por exemplo - eu estou dizendo isso, mas Décio Pignatari já disse isso. A pintura está em extinção. O objeto único é uma coisa. Por exemplo: você compra uma obra minha. Você coloca o meu trabalho lá na sua casa, e na sua casa vão umas cinco pessoas. Seus amigos. Então, a comunicação é muito restrita. É diferente do início do século passado. No século passado, era completamente diferente. Picasso é uma coisa. Mondrian é outra. Todos os outros são outra coisa. O negócio é você comprar um objeto, por saber que é aquilo é uma obra de arte. Que tinha uma validade. Mas isto, no início do século passado. Nós estamos no século 21.

Falves Silva e o relevo do Poema Processo

RP - Eu aproveito e faço aquela pergunta sobre o consumo de arte na cidade, de maneira geral, e no Estado. Porque aqui as pessoas confundem entretenimento com cultura. Só que aqui a gente depende das instituições. E como você falou, de um governo mantido com o dinheiro do povo. Como você vê isso?
Falves - Eu vejo o seguinte. A cultura no Estado não mudou. Desde a minha juventude que não mudou absolutamente nada. Eu estou com 64 anos. Estou em fase terminal. Estou pensando inclusive fazer a última exposição, porque não adianta. O Rio Grande do Norte não adianta.
RP - Ele é inviável?
Falves - Não é inviável. Não é bem isso. Ela não é viável. Não é que seja inviável. É que não é viável. A arte no Rio Grande do Norte não é viável. Não dá para escapar disso. Conheço todos os artistas da minha geração. Claro que tem exceção, aqueles que já nascem em berço esplêndido. Quem já nasce em berço esplêndido, não tem do que reclamar. Tem só que dar continuidade e estudar. Mas eu, por exemplo, eu continuo na miséria, sou de classe baixa, ganho um salário mínimo, a coisa mais absurda que pode acontecer. Mas isso é natural. Quem ganha um salário mínimo não tem condições de comprar roupa, não tem condições de comprar sapato. Tanto é que eu, só de sacanagem, que eu sou um pouco anarquista, eu digo: "O dinheiro que eu ganho só dá pra tomar cachaça, pagar ônibus e não comer." Isso eu vi num filme francês, onde se dizia: "O salário que eu ganho só dá pra fumar, andar de ônibus e não comer".
RP - E assim é grande número de artistas?
Falves - É. Um grande número de artistas, que mal sobrevive. Mas não é um número pequeno, não. É grande. Tem sim. Eu diria que o próprio Newton Navarro morreu esquecido. O sistema político, educacional e artístico da cidade. Eu acho que a gente deveria inclusive dar mais ênfase, agora, a Dorian (Gray) enquanto ele está vivo, que é um grande artista. E não deixar pra depois. Porque vamos correr o risco de, com esse excesso de folclore, quem faz arte hoje ficar esquecido. Hoje, você fica esquecido. Você está fazendo reverência ao passado.
RP - Só se lembra quando o cara morre.
Falves - Quando o cara morre.
RP - Como no caso de Elino Julião.
Falves - Pronto. Elino Julião.
RP - Quando morre vira um santo.
Falves - Quando morre vira santo. Essa coisa do folclore. É bom ressaltar, eu não estou indo de encontro a quem faz um folclore certo, como no caso Elino Julião, que é um dos últimos descendentes da música genuína nordestina. Quer dizer, um dos últimos que tem uma obra linear e dentro do conhecimento dele e da influência que ele teve, que é de Jackson do Pandeiro. Eu tenho a maior admiração por ele. Mas, por exemplo, eu admiro outros. A minha grande admiração hoje é Tom Zé. Ele faz uma mistura do folclore com a modernidade. E isso é necessário.

Falves Silva e o relevo do Poema Processo

RP - Agora, o Brasil, é como se ele fosse um arquipélago, cheio de ilhas que não se comunicam.
Falves - Exatamente. São várias ilhas. O Nordeste, por exemplo, é uma imensa ilha. Eu diria que é quase um país isolado do Sul. Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, e Brasília se acham os donos da verdade. Quem noticia um artista do Nordeste, da Paraíba, do Rio Grande do Norte? É raríssimo. O cara tem que ir para lá, para o Rio ou São Paulo, comer o pão amassado pelo demônio, pra poder virar o cara.
RP - Você tentou, artisticamente, para que houvesse uma intercomunicação daqui com o Rio Grande do Sul? Nós temos uns escritores jovens, agora, que se comunicam. Mas, em geral, poderia haver alguma coisa nesse sentido, né?
Falves - Tem tudo a ver para que exista esse movimento, com apoio inclusive da internet. Que a internet eu acho que é uma via da maior importância. Agora, contraditoriamente, eu não gosto de computador. Eu ainda faço uma coisa assim artesanal. Porque arte é contraditória. A gente vai lá e vem cá. Eu sou um primitivo. Eu nasci em 43. Então, eu evoluí involuindo. Aí é uma questão que...
RP - Mas vai também do seu entorno.
Falves - Exatamente. Do meu entorno. Por exemplo: eu nunca fui ao Rio de Janeiro, nunca fui a São Paulo. O lugar mais distante foi Recife, Fortaleza.
RP - Agora, o que é que Moacy Cirne fez agora, neste momento, para mexer, divulgar sobre os 40 anos. Porque ele vai e vem do Rio de Janeiro.
Falves - Eu acho que Moacy é o cara mais importante nessa ida e volta, nesse trânsito. Ele sempre foi. Por que? Ele é um cara que tem um poder aquisitivo familiar. É o contrário de alguns outros, que não têm. Isto, em benefício dele, é excelente. Eu acho que Moacy tem uma capacidade de raciocínio muito forte, e graças a ele é que esse movimento do Poema Processo eclodiu aqui no Rio Grande do Norte e no Rio de Janeiro, simultaneamente. Isso aí eu acho inegável. Ele é uma pessoa que tem um conhecimento imenso.
RP - Mas você, se hoje chegasse uma pessoa, um grupo pra botar você para ir para o computador, pra internet, pra você dominar a informática, você iria?
Falves - Olha, eu, com a idade que eu tenho, não é uma questão de idade, mas uma questão de manuseio com o objeto com o qual você quer trabalhar. Eu estou fazendo uma exposição agora na qual estou mostrando isso.
RP - Sim, fale sobre a exposição.
Falves - Vai ser na Ribeira, durante o Encontro Natalense de Escritores. Nela estou mostrando minha evolução. É uma exposição particular minha, em homenagem aos 40 anos do Poema Processo. (Foto de Paulo Augusto: Marcellus Bob e Falves [dir.])