domingo, março 30, 2008

Parlamentares na Radiodifusão

Cresce o número de políticos donos de meios de comunicação
Por Ana Rita Marini em 25/3/2008
Reproduzido do boletim e-Fórum nº 196, 21/3/2008, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC)
"No Brasil, 271 políticos são sócios ou diretores de emissoras de televisão e rádio – os meios com maior abrangência entre a população. Especialmente em ano de eleições, interesses políticos e econômicos dos proprietários de veículos de comunicação podem afetar diretamente a programação e mesmo a cobertura jornalística dessas empresas, chegando a influenciar no processo eleitoral. Apesar de estar em desacordo com a Constituição Federal, o número de políticos empresários da mídia só vem crescendo. São (ou foram) candidatos privilegiados, porque podem tirar vantagem dessa condição em campanha. O resultado fere a democracia.

Parlamentares na Radiodifusão

Dados apurados recentemente pelo Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom) revelam que 271 políticos brasileiros – contrariando o texto constitucional (artigo nº 54, capítulo I) – são sócios ou diretores de 348 emissoras de radiodifusão (rádio e TV). Desses, 147 são prefeitos (54,24%), 48 (17,71%) são deputados federais; 20 (7,38%) são senadores; 55 (20,3%) são deputados estaduais e um é governador. Esses números, porém, correspondem apenas aos políticos que possuem vínculo direto e oficial com os meios – não estão contabilizadas as relações informais e indiretas (por meio de parentes e laranjas), que caracterizam boa parte das ligações entre os políticos e os meios de comunicação no País.
"Salta aos olhos a quantidade de prefeitos donos de veículos de comunicação. Demonstra a conveniência do Executivo em usar esses meios para manter uma relação direta com seu eleitorado", destaca James Görgen, pesquisador do Epcom.
Entre as mídias mais apreciadas pelos prefeitos, conforme a pesquisa, destacam-se o rádio OM (espaço onde acontecem os debates públicos) e as rádios comunitárias (que permitem a proximidade com a comunidade, a troca diária com o eleitorado, seja por meio da administração da rádio, seja pelo controle da programação). "Assim, eles garantem suas bases eleitorais", avalia Görgen. Já os senadores e deputados aparecem como proprietários de mídias com maior cobertura, como as TVs e FMs.
"Em ano de eleições, é difícil imaginar que esses políticos deixem de usar seus próprios meios de comunicação para tirar vantagem logo de saída na corrida eleitoral", analisa o pesquisador, dando como exemplo os prefeitos-proprietários, que este ano podem usufruir de temporada maior que a regulamentar da campanha para fazer sua exposição positiva. "Isso dá a eles uma vantagem enorme e representa um risco à democracia", conclui.

Parlamentares na Radiodifusão

Em relação às regiões, relativizando as proporções de cada uma e a densidade de municípios, a pesquisa confirma a prática do chamado "coronelismo eletrônico" concentrado no nordeste brasileiro, onde prevalecem políticos controlando meios de comunicação.
Quanto aos partidos, esses políticos surgem assim: 58 pertencem ao DEM, 48 ao PMDB, 43 ao PSDB, 23 são do PP, 16 do PTB, 16 do PSB, 14 do PPS, 13 do PDT, 12 do PL e 10 do PT.
Os números apresentados são resultado do cruzamento de dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) com a lista de prefeitos, governadores, deputados e senadores de todo o país.
Para evitar o coronelismo eletrônico
No ano passado, uma subcomissão especial da Comissão de Ciência, Tecnologia e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados, analisou os processos de outorga no setor de radiodifusão e apresentou, em dezembro, relatório revendo as normas de concessão de rádio e televisão. Uma proposta de Emenda Constitucional foi encaminhada pelo grupo, acrescentando um parágrafo ao artigo nº 222 da Constituição, que estabelece:
"Não poderá ser proprietário, controlador, gerente ou diretor de empresa de radiodifusão sonora e de sons e imagens quem esteja investido em cargo público ou no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial".
A presidente da subcomissão, deputada Luíza Erundina (PSB-SP), explicou, na época, que, como esse artigo ainda não foi regulamentado, os detentores de cargos públicos conseguem burlar a Constituição. Segundo ela, os políticos utilizam essas brechas para adquirir emissoras.
O coordenador-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Celso Augusto Schröder, condena a utilização privada das concessões públicas e defende que a lei seja mais clara e que sejam construídos ritos públicos eficientes.
A deputada relatora da proposta, Maria do Carmo Lara (PT-MG) declarou, no relatório, que a propriedade e a direção de emissoras de rádio e televisão "são incompatíveis" com a natureza do cargo político.
O texto cita ainda um "notório conflito de interesses" dos parlamentares, já que os pedidos de renovação e de novas outorgas de rádio e TV passam pela aprovação dos próprios deputados e senadores. A proposição ainda não foi posta em votação. (Fonte: Observatório da Imprensa).

quarta-feira, março 26, 2008

Nós somos o público

Le Monde Diplomatique
março 2008
CINECLUBISMO
Nós somos o público
A questão dos direitos do público tornou-se inadiável. As enormes transformações que estão ocorrendo nos meios de comunicação e circulação e intercâmbio da cultura exigem o estabelecimento de normas que nos garantam a condição de sujeitos — muito mais do que consumidores
Felipe Macedo
A 1ª Conferência Mundial de Cineclubismo, realizada na Cidade do México, no final de fevereiro de 2008, recuperou a Carta dos Direitos do Público, um verdadeiro manifesto e um esboço de programa de defesa do público e de luta pelo reconhecimento de seus direitos e das entidades que os representam.
A Carta foi aprovada em 1987, na cidade de Tabor, na Tchecoslováquia (hoje República Tcheca), quando apenas se reconheciam os grandes traços da transformação dos paradigmas de comunicação e informação, assim como da generalização em escala inédita dos meios e produtos audiovisuais. Mantém-se absolutamente atual e, mais que isso, urgente. Com base nela, o Conselho Nacional de Cineclubes está lançando uma campanha em defesa dos direitos do público.
Nunca os meios e produtos de comunicação audiovisual — da televisão ao cinema, dos DVDs aos celulares — tiveram tanta disseminação em todo o mundo. Por outro lado, especialmente nos países "em vias de desenvolvimento" ou mesmo "emergentes", o acesso à qualidade e pluralidade das formas de comunicação e expressão do conhecimento e da arte estão cada vez mais restritas. São restringidas pela privatização e controle da circulação das obras de arte e dos bens culturais. Houve uma incrível diminuição de distâncias de comunicação e uma inédita diversificação de meios e produtos culturais. Mas a "otimização" de segmentos de mercado, o controle dos "direitos de propriedade intelectual" e, enfim, os preços abusivos relegam a quase totalidade das populações de países como o nosso à periferia do conhecimento e da cultura universais. É uma posição colonial diante da circulação da cultura, uma proletarização no acesso à comunicação, à cultura, à cidadania. (Foto)

Nós somos o público

Desde seu surgimento, no início do século 20, os cineclubes foram os únicos a advertir sobre o mal uso do cinema. Desde logo, atuaram no sentido de organizar o público. Há cerca de 90 anos, trabalham e confundem-se com este.
"Não queremos consumidores de comunicação. Queremos um público ativo, consciente, responsável, capaz de propor e conhecedor de seus próprios direitos inalienáveis"
Constroem uma experiência única de inclusão e representatividade, já que "cremos que o público deve ser considerado como tal, e não ser visto como incapaz de autonomia e liberdade, destinado a assumir e aceitar o papel de consumidor passivo, mudo, que apenas assimila tudo o que se lhe oferece das mais diversas maneiras. Depois esse consumidor é consumido pelos mesmos meios de comunicação: porque paga como assinante de televisão; paga como espectador na bilheteria do cinema; paga ao comprar o jornal; paga os produtos que a publicidade, infiltrando-se com uma freqüência vertiginosa e absolutamente intolerável nas transmissões televisivas, lhe propõe e impõe... Mas nós não queremos consumidores de comunicação, queremos um público sujeito ativo, consciente, responsável, capaz não apenas de propor – porque deve propor – mas igualmente conhecedor de seus próprios direitos que, para nós, são inalienáveis e essenciais, para que o cidadão cresça e possa alcançar os níveis do autogoverno." [1]
A degradação do conceito de direito autoral, manipulado por corporações de porte planetário, expõe a fragilidade de direitos fundamentais do público, consagrados nos maiores textos constitucionais [2]. De fato, as corporações apropriam-se indevidamente das obras e produtos do conhecimento e das artes, não apenas restringindo economicamente seu acesso a uma pequena "elite", mas reprimindo ativamente iniciativas culturais e educativas sem finalidades lucrativas. Exemplo recente e notório é o do Cineclube Falcatrua, [3]atividade de extensão universitária, exercida no recinto da Universidade Federal do Espírito Santo sem cobrança de qualquer taxa, processado pela exibição de dois filmes disponibilizados publicamente pelos seus autores/realizadores. Em todo o Brasil, cineclubes, prefeituras, até cidadãos privados recebem notificações e ameaças quanto à exibição de obras audiovisuais sem intuito de lucro – contradizendo diretamente o art. 184 do Código Penal.]]. (Foto: olho.)

Nós somos o público

As relações entre os meios audiovisuais de comunicação e o público são reguladas, basicamente, pelos interesses das grandes corporações de comunicação. O público — que no mundo moderno praticamente confunde-se com o conjunto da população — é encarado e relegado ao papel de platéia passiva, de espectador submisso, de consumidor desprovido de interesses e inteligência, mero objeto e nunca sujeito do processo de comunicação.
"Porque se continuássemos apenas a escutar, sem usar esses instrumentos para nos expressarmos, perderíamos a própria substância do ser humano"
Os direitos do público não se restringem, portanto, ao livre acesso à informação e à cultura, mas incluem o direito de responder, participar e intervir no processo de comunicação - individualmente ou por meio das entidades que representam seus interesses. "Porque se continuássemos apenas a escutar, sem usar esses instrumentos para nos expressarmos, perderíamos a capacidade de comunicação entre os homens, que forma a própria substância do ser humano" [4].
A questão dos direitos do público tornou-se urgente e inadiável. As enormes transformações que estão ocorrendo nos meios de comunicação e nas formas de circulação e intercâmbio da cultura da humanidade, exigem o estabelecimento de normas que assegurem o direitos de todos e de cada um.
Por isso a Carta dos Direitos do Público. É uma tomada de posição inicial no campo do audiovisual, para uma ampla mobilização civil em prol da definição clara e inequívoca dos direitos da população — que deve e exige participar, ativa e conscientemente, do processo de comunicação entre as pessoas, regiões, povos e culturas.
Leia mais:
Carta dos Direitos do Público
http://cineclubessp.multiply.com/journal/item/5
[1] Filippo M. De Sanctis, Per uma riccerca-transformazione con el publico dei mídia, in Masala F., Publico e comunicazione audiovisiva, Roma, Bulzoni, 1986.
[2] Declaração Universal dos Direitos Humanos – Art. 27: Todo homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios. – Constituição da República Federativa do Brasil – Art. 215: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
[3] Ler também A revolução do Cine Falcatrua, Le Monde Diplomatique, Caderno Brasil, fevereiro de 2008.
[4] Ricardo Napolitano, presidente da Federazione Italiana dei Circoli di Cine. Intervenção na discussão pública da Carta dos Direitos do Público, em Roma, 1988, com a participação de representantes da Comunidade Econômica Européia, do Parlamento Europeu e do Conselho da Europa, além de forças política e culturais italianas.
(Texto publicado no Le Monde Diplomatique - Diplô. Foto: pombo lendo.)

segunda-feira, março 24, 2008

Anatel e Ministério Público alimentam clima fascista

PRISIONEIRO DA DEMOCRACIA
Anatel e Ministério Público alimentam clima fascista
Entrevista a Paulo Augusto do Jornal de Natal

Intimado pelo Ministério Público para comparecer a interrogatório, marcado para o dia 3 de abril, às 16h40, na Comarca de Macau, sobre o funcionamento da Rádio Comunitária 93.5 FM, Rádio Solidariedade, emissora da Comunidade Norte-rio-grandense de Defesa da Cidadania, sediada em Macau, por injunção da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o animador cultural João Eudes Gomes, reatualiza, como num filme noir, as mesmas angústias do preso de consciência, cujo único delito cometido tem sido o de exercitar pacificamente suas liberdades fundamentais.
Com a ajuda do advogado Emanuel Paiva Palhano, do gabinete do deputado petista Fernando Mineiro, que assumiu sua defesa, João Eudes lamenta que, diante do abuso e do excesso já praticados anteriormente por esses dois entes da República, tenha se ajuntado, no momento, a ameaça de prisão preventiva, como instrumento de terror de Estado.
Tudo isto apenas por João Eudes fazer operar a emissora 93.5 Rádio Solidariedade, numa atividade que foge aos parâmetros da própria legislação em vigor, em tudo aparentando uma perseguição de grupos políticos que atuam em Macau e no Rio Grande do Norte, ao se verem perdendo terreno em Macau, diante do avanço das forças democráticas.
Na entrevista que concedeu a Radar Potiguar, João Eudes, a par de atualizar a situação vivida pelos operadores de rádios comunitárias no Nordeste e no Brasil, se reconhece como um "perseguido da democracia", digno de indenização através de uma anistia para "presos da democracia brasileira".
Apesar das violências de ordem física e moral sofridas - João Eudes foi preso por agentes da Polícia Federal, no dia 26 de outubro de 2006, na sede da emissora comunitária, e teve apreendidos equipamentos como uma mesa de som Wattsom ciclotron MXS 611, o transmissor utilizado em radiodifusão Synthesized FM Transmitter STR-25, série TF25 1127, além de diversos CDs da programação da emissora -, ele se considera "diplomado pela Justiça Federal, pelo Ministério Público Federal", como "inimigo da ordem", já que tem sido tratado na conta de um "desordeiro público", acreditando que chegará a "mestre", de acordo com os parâmetros acadêmicos da "Faculdade da Miséria". Confira, abaixo, trechos da entrevista.

Anatel e Ministério Público alimentam clima fascista

Jornal de Natal - Estamos com João Eudes, que recebeu uma intimação para comparecer a uma audiência no dia 3 de abril, às 16h40, na Comarca de Macau, sobre o caso da Rádio Comunitária 93.5 FM, Rádio Solidariedade. Você dizia que essa perseguição transforma você num "perseguido na democracia". Como se dá isso?
João Eudes Gomes - Um "perseguido da democracia". Quer dizer, você só via isso nos tempos negros, tétricos, da ditadura militar. Mas, quando se fez a nova Constituição, se assegurou, no Artigo 5º, o direito da comunicação, da livre expressão. Além do Pacto de São José da Costa Rica, que o Brasil assinou, regulamentando a fruição desse direito, de qualquer pessoa comunicar as suas idéias, sem censura ou sem licença. No entanto, o Brasil assina o Pacto da Costa Rica, edita a Constituição de 1988, que agora está fazendo 20 anos, mas nós ainda estamos vivendo na época da ditadura. Quer dizer, para mim, como dirigente do Movimento Popular, eu não estou vivendo ainda o Estado Democrático de Direito.
JN - Parece que houve um atropelo da parte deles, já que esta intimação veio diante de uma ação que ainda está correndo, quando levaram você preso para Mossoró.
João
- Acontece que, por uma mesma acusação, eu sou processado duas vezes. Pelo mesmo "delito", entre aspas. Inclusive, preso. Tive os meus equipamentos seqüestrados, indisponibilizados, apreendidos, sem o devido processo legal. Qual seja, sem um processo com amplo direito de defesa, transitado e julgado. Quer dizer, o processo ainda está numa fase de recurso, mas eu já tive os equipamentos apreendidos, antes da decisão. Quem faz isso? A Anatel, a Polícia Federal, o Ministério Público Federal, que, aqui no Rio Grande do Norte, está muito atrasado. Porque, ao invés dele defender a Constituição, garantir o direito do cidadão a fruir a comunicação, é ele que passa a agredir, a penalizar, com a lei de um tempo que não volta mais, um cidadão que quer se comunicar. Quando a gente sabe que o planeta pode se acabar, o cidadão é impedido de veicular suas idéias, de se comunicar com outras pessoas que querem ouvir a sua palavra.
JN - Tem um porém, ainda. A própria lei (Lei no 4.117/62) em que se baseia a Anatel é uma lei que já foi substituída por outra.
João - Ela é uma lei suplantada pela Constituição de 88. E outra coisa: ela não é lei para rádio comunitária. Ela é lei para radiodifusão comercial. Rádio comunitária não chega nem perto, vamos dizer assim, da meta, que é de 50 watts, para você poder caracterizar radiodifusão. O transmissor utilizado pela FM Solidariedade 93.5 é de 25 watts. E você só pode considerar radiodifusão acima de 50 watts. Na lei de rádio comunitária não existe nenhuma pena de restrição de liberdade. Imagine de pedido de prisão preventiva. Existe a lei específica de rádio comunitária, de 1998 (Lei nº 9.612, de 19 de fevereiro de 1998, que institui o Serviço de Radiodifusão Comunitária e dá outras providências). Essa lei admite a autuação, a advertência, a multa e, no último caso, a suspensão da atividade. Mas não fala em restrição de liberdade. No entanto, pessoas com cabeça fechada, atrasadas, se utilizam de uma lei da ditadura, para penalizar a pessoa, para criminalizar a pessoa que ousa se comunicar de forma independente e livre, sem as amarras do Estado. Porque o Estado não tem esse poder de interferir nos direitos fundamentais. O direito fundamental é auto-exercitável. Ele independe de autorização de justiça, de Estado. Ele é um direito que é fundamental. O Estado pode intervir, para garantir o direito. Nunca para suprimir esse direito. Então, nós nos negamos, vamos dizer assim, a obedecer a um sistema que está ultrapassado, que viola a cidadania, a democracia e os direitos humanos. E o Ministério Público Federal, que era para defender, é ele que está denunciando. Ele, ao invés de se preocupar com Cacciola (O ex-banqueiro ítalo-brasileiro Salvatore Cacciola, ex-proprietário do Banco Marka, foi condenado em 2005 à revelia a 13 anos de prisão pela Justiça Federal do Rio de Janeiro por crimes de peculato (utilização do cargo para apropriação de dinheiro) e gestão fraudulenta do Banco Marka. A ajuda do Banco Central recebida por Cacciola causou prejuízos de R$ 1,5 bilhão aos cofres públicos, segundo conclusões de uma CPI sobre o caso), com os escândalos do mensalão, está preocupado com atividade de rádio comunitária.

Anatel e Ministério Público alimentam clima fascista

JN - O que você pode perceber que esteja atrás disso? Porque colocar toda uma máquina estatal, com instituições venerandas, gastarem dinheiro e tempo na perseguição de pessoas e numa situação que se considera ínfima, diante de outros casos mais graves no país, crimes que estão sendo cometidos?
João - Olha, durante o ano de 2007, no Brasil, foram fechadas rádios e processadas 2.610 pessoas nessa atividade. O resultado disso nós entendemos como sendo a colaboração, a compreensão e a contribuição do chamado Governo Democrático e Popular para a comunicação comunitária. Esse processo não acontece só comigo. Está acontecendo no país todo. Ontem mesmo, dia 17/03, foi fechada, no Estado de Pernambuco, de forma violenta, autoritária, abusiva, 40 rádios comunitárias. E seus dirigentes, todos eles criminalizados, denunciados como criminosos, e os equipamentos confiscados. Então, quando você vê uma coisa dessas, você chega à conclusão que a Anatel, que, inclusive, já tem aí nas costas mais de 4.000 processos por abuso de poder, desrespeitando uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que retirou, através de uma ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade), o poder de polícia dessa agência. Ou seja, proibiu a Anatel de agir assim. Então, quando uma agência de telecomunicação age desrespeitando uma determinação do Supremo Tribunal Federal de Justiça do Brasil, eu chego à conclusão que nós não estamos mais numa democracia, nós estamos numa ditadura disfarçada. O Estado Democrático de Direito não existe. Existe o Estado Fascista Disfarçado. Porque como é que uma agência se arvora nessa posição? E além do mais: todas as operações são feitas gastando o dinheiro do povo. Abusando do poder e levando a Polícia Federal. A Polícia Federal sabe que não pode assinar nenhum documento. Ela está ali só para intimidar, caso o cidadão reaja, defendendo a sede da instituição, cobrando um mandado judicial. Aí a Polícia Federal entra para intimidar, prender, alegando desacato à autoridade, que era um instituto muito comum na ditadura.
JN - E a Polícia Federal se meter numa coisa dessas...
João - Se meter, apenas, vamos dizer assim, de espantalho... Ela sabe que não pode assinar os atos de lacração. Não tem poder para isto. Isso não é caso de polícia.
JN - Ao mesmo tempo, vêem-se os casos de rádios pertencentes a políticos, como a do senador José Agripino Maia, em Macau, como a do deputado José Dias, em Pau dos Ferros, e nada é feito contra eles. O que você diz?
João - A imprensa noticiou o que são dois casos absurdos, inclusive, proibidos por lei. É o fato de parlamentares serem detentores de meios de comunicação. Aqui no Rio Grande do Norte, por exemplo, o deputado José Dias inaugurou uma rádio de uma fundação ligada a ele lá em Pau dos Ferros. Inclusive, a informação veiculada na imprensa é que a rádio abrange 40 municípios da região do Alto Oeste. O senador José Agripino instalou uma antena de 55 metros dentro de Macau, e a freqüência dessa rádio chega até a Finlândia. Agora, isso é um caso que só acontece no Brasil, porque, como eu estou dizendo, o Estado é fascista. Se a lei, a Constituição proíbe parlamentares deter qualquer meio de comunicação. Senador, deputado estadual. Mas você pode olhar, todas as famílias, as oligarquias, que querem comandar nossos destinos, essas oligarquias não param de pensar como dominar os fracos, como dominar os pobres, como tirar dos negros, dos pobres, o lucro para eles e suas famílias. Apesar dos pobres viverem na miséria desse salário de R$ 415,00, eles se vendem por muito pouco, porque suas necessidades são muito poucas.
Você sabe que o que se consome mais no momento é a palavra. O maior produto de consumo na atualidade é a palavra. Então, as televisões, no Rio Grande do Norte, as rádios, estão todas nas mãos das oligarquias. Com concessões espúrias, doações feitas na época da ditadura, ou através de conchavos políticos, as oligarquias adquiriram o direito de dominar o espectro elétrico-magnético. Então, é preciso que se faça a reforma agrária do ar. Não é só lutar pela terra.

Anatel e Ministério Público alimentam clima fascista

JN - Faça um pequeno histórico dessa luta no Estado. Quem era que existia, quem existe hoje? Qual uma instância que possa servir de abrigo, de defesa? O que faz a Abraço (Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária) aqui no Estado? Quem pode ajudar vocês?
João
- O fenômeno das rádios livres se dá no Brasil na década de 90. Pipocam as rádios livres. Aqui no Rio Grande do Norte houve também várias tentativas. E dentro disso foram criadas instituições, tem a nacional, tem vários grupos. Tem a Confederação, tem a Abraço. Aqui no RN tem a Abraço que já fez, me parece, um congresso sobre rádio comunitária, na década de 90. Mas, houve um refluxo, porque o pessoal pensava que era a realidade de São Paulo e transportaram isso pra cá sem uma reflexão. Acontece que houve uma repressão muito forte, e as pessoas estão desestimuladas.
JN - Devido a esse tipo de coisa...
João - Sim. Porque como é que pode? A rádio presta serviço à população e você vê a sua casa invadida, uma perseguição. E você não tem a quem recorrer. Porque se é a própria Justiça Federal, se é o próprio Ministério Público Federal, se é a Polícia Federal, se é a Anatel que estão lhe perseguindo, a quem você vai se socorrer? Então, houve esse desestímulo, esse desinteresse, o medo. Nesse ponto, as oligarquias obtiveram êxito. No sentido de amedrontar, de desestimular a consciência livre, que queria ver fluir em cada bairro de Natal, nos interiores, as rádios comunitárias independentes, livres da interferência do poder estatal.
JN - Gostaria que você falasse mais sobre a configuração da Anatel, que a você pareceu um "canil de Pit Bull" do sistema.
João
- A Anatel é esse canil de Pit Bull a serviço das oligarquias. Como as oligarquias nomeiam os camaradas lá, aí quando eles querem favores, aí eles pedem.
JN - O que houve no caso do ministro das Comunicações, Hélio Costa, que mantinha uma rádio comunitária em Minas Gerais e teve de desfazer-se dela às pressas?
João
- É, favorecendo os grupos. Inclusive, agora mesmo ele vendeu uma rádio, que era dele. A Folha de S. Paulo denunciou que o ministro das Comunicações tinha uma rádio FM, e, de imediato, o Conselho de Ética da República mandou ele se desfazer. Quer dizer, um caso espúrio, totalmente de promiscuidade.
JN - Para fazer campanha política...
João - Ele chegou a ministro através dessa rádio. A rádio transmitia, como transmite aqui no Rio Grande do Norte os discursos de Felipe Maia, de José Agripino, de Garibaldi, da Família Alves, da Família Melo, da Família Souza. Dessas oligarquias que se arvoram ser donas do destino do povo. Então, eles agem como os cachorros desse povo, que é para justamente perseguir o cidadão comum. Quem deveria se contrapor a uma coisa dessas seria a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Seria a Procuradoria de Defesa da Cidadania. Seria a CNBB (Conferência Nacional de Bispos do Brasil), seria a Comissão dos Direitos Humanos. Era deles darem um basta nessa coisa da Anatel estar fazendo esse serviço para as oligarquias.
JN - Fale sobre o painel que houve no Senado, para atualizar os senadores sobre o caso das rádios comunitárias.
João - A presidente da Confederação das Rádios Comunitárias fez uma palestra, um painel, com uma reivindicação muito importante. Qual seja: a anistia para todas as pessoas que estão criminalizadas e processadas no Brasil, que são justamente essas duas mil cento e poucas pessoas, quatrocentas e poucas pessoas que estão sendo processadas neste momento, e que têm sua conduta criminalizada. E ela defende também que seja processada a Anatel e seja processada a Polícia Federal. E, em sendo processados esses dois entes da Federação, do Governo Federal, que a pena seja um curso de seis meses de Relações Humanas, com os movimentos sociais.
Radar - Para eles aprenderem...
João - Aprenderem a respeitar e a se relacionar com a sociedade civil. Porque eles vêm da ditadura, então eles não sabem, eles não têm informação, eles são ignorantes. A respeitar o direito assegurado na Constituição do país.
JN - Ao falar de anistiados, lembra-se que muitos anistiados por terem sido presos pela ditadura estão recebendo fortunas, muitos deles, como o jornalista Carlos Heitor Cony, e hoje deveria existir os anistiados da própria democracia...
João
- É. Seria uma indenização para os perseguidos da democracia. Porque, como todo mundo está embriagado, pensando que nós vivemos numa democracia, então, existe a possibilidade de se aventar uma indenização. Mas não existe. Agora, acontece que existem perseguidos na democracia.
JN - Não tem presos não, né?
João - Pior. Porque a prisão é aberta. O que estão fazendo comigo é um terror psicológico. É um terrorismo. É um absurdo a pessoa vir dizer que vai pedir a prisão preventiva de uma pessoa sem base legal. Sem se fundamentar numa lei. Qual é o fundamento? Em que lei o Ministério Público vai se fundamentar, com a Anatel, para pedir a minha prisão preventiva? Primeiro, porque nunca me neguei, em nenhum momento, atender o chamado da Justiça. Segundo, porque nunca ameacei nenhuma testemunha ou investigação do Ministério Público. Terceiro, porque não tenho registrado nenhuma atividade criminosa. Minha ficha é "nada consta". Então, como é que eu posso ser considerado um perigo para o Estado? Se eu não tenho dado material para isso? Se eu não tenho conduta delituosa? E se eu nunca me neguei atender o chamado da Justiça? Tenho endereço fixo. Toda vida que o Ministério Público me denunciou, e que os juízes me intimaram, eu nunca me neguei atender a decisão do juiz. Então, por que motivo se vem aventar a possibilidade de prender preventivamente a pessoa sob um falso argumento de desordem pública.
JN - Tem o fato também de eles virem cercear o seu trabalho, obstacular exatamente a sua atividade profissional?
João - Atividade profissional, sim, porque eu estou trabalhando. Eu trabalho de 5h da manhã às 12h da noite. Dou plantão, a rádio dá plantão. A rádio não recebe dinheiro público. A rádio presta serviços a todas as instituições. Presta serviço à Justiça, ao Ministério Público, à Saúde, à Educação, ao Unicef. Agora, isto gratuitamente. Não existe contrato com o governo. A toda hora chega. Temos os documentos sobre as campanhas. Agora mesmo nós divulgamos, passamos 60 dias numa campanha de combate à dengue. Haja vista de houve 78 casos em Macau, inclusive cinco casos já comprovados de dengue hemorrágica. Inclusive com dois óbitos. O estado e o município mandaram (informes) para a gente fazer a divulgação. A própria Justiça, agora, no recadastramento eleitoral, se utilizou da rádio, por mais de 40 dias. Gratuitamente. Agora, é o tipo da coisa. É aquilo que a gente já viu, que Chico Buarque já disse: É uma rádio-Geni. Depois de usada, vem ser abusada. Cuspida. Apedrejada e violentada.

Anatel e Ministério Público alimentam clima fascista

JN - Gostaria de saber o seguinte: agências similares à Anatel, nos Estados Unidos, por exemplo, em democracias mais sólidas, em economias mais possantes, elas atuam, inclusive, protegendo o direito da informação?
João - O Estado americano considerou essencial para o funcionamento da democracia a instalação de rádios comunitárias. Então, lá, o órgão regulador não proíbe, não persegue, não cerceia; ele apóia, ele incentiva, ele assegura,orienta, facilita o exercício do direito.
Radar - Tudo por não ter medo de ver balançada a democracia por conta de uma rádio comunitária...
João - E por garantir à sociedade uma alternativa. Se você não quer anunciar na rádio comercial, na televisão comercial, você tem uma rádio comunitária e uma televisão comunitária para você se comunicar. Acha, o Ministério Público dos Estados Unidos que, para o bem da sociedade, essas rádios têm que existir.
JN - As cidades do interior, além de rádios comunitárias, deveriam ter suas televisões comunitárias, comunicando-se com a sociedade?
João
- Esse vai ser um processo inevitável. Vai ser inevitável como a digitalização. Agora, o que vai acontecer é a verdadeira democracia. Porque não vai ser propriedade particular de grupo A, nem de grupo B. Vai ser a sociedade organizada, reunida, sem hierarquia, debatendo, que vai encontrar um caminho, para criar a rádio digital comunitária.
JN - E esses políticos proprietários de rádios?
João - Esses, a queda deles, é como eu disse, está garantida. Porque nós estamos com 20 anos de Constituição. Mas 20 anos de Constituição não garantem a efetivação desses direitos. O povo já passou por 20 anos de Constituição. Agora, o povo vai buscar mais 20 anos para efetivar esses direitos. Porque o povo não está exercendo o direito. O direito está garantido na lei. Nenhuma lei pode suprimir esse direito. Aí ele vai ser divulgado e efetivado. Eu creio que o destino das oligarquias no Rio Grande do Norte e no Brasil está selado. Eles não têm mais para onde correr.
JN - Isto acontece no Rio Grande do Norte e no Brasil num momento em que se encontra em funcionamento as transmissões de rádio via internet, que podem ser sintonizadas, sem quaisquer estorvos, em qualquer canto do planeta.
João - A Europa, por exemplo, considerou agora obsoleto o problema da rádio digital. A digital já é obsoleta. E nós, lá em Macau, ainda estamos sendo perseguidos por usar a rádio analógica. Por exemplo, é como se você pegasse uma chibanca para quebrar uma montanha. Macau está nessa fase. Mas já existe o raio laser, lá, que racha a montanha no meio. E o raio laser seria o sistema on-line de rádio. Agora, nós vivemos num país atrasado, em que os governantes são atrasados. Os legisladores brasileiros caminham no asfalto a passo de cágado. Quer dizer, chegou essa novidade tecnológica, mas não tem legislação. Já está aí, em várias cidades o povo já faz rádio através do sistema on-line, pela internet. E vai ser cada vez mais. Vão diminuir os custos e as populações pobres vão ter acesso a isso, porque é um direito inalienável do ser humano.
JN - Contra esse progresso da ciência, vem a solução oferecida pela ministra-chefe da casa Civil, Dilma Rousseff, para o problema das rádios comunitárias. Como se deu isso?
João - Foi o Ministério da Casa Civil que jogou uma bola. Você sabe o que é uma bola? É aquela carne moída com vidro dentro, para o movimento popular engolir. Quando, na Europa, se diz que o sistema digital de rádio já está atrasado, a proposta deles - nunca nenhum governo teve essa ousadia -, a proposta deles, através da ministra, é que se desça o espectro de FM para AM. Significa você dizer, por exemplo, que o custo de uma rádio comunitária popular, vamos dizer que seja R$ 10 mil, no caso da proposta da Casa Civil, ela iria para R$ 300 mil. Porque são equipamentos enormes, jurássicos, dinossauros. E que não têm mais sentido. Se a Europa já descartou a rádio digital?!
JN - E as crianças da favela já andam com iPod?
João - As crianças dos guetos, dos "bairros periféricos", como eles chamam, né? E nós aqui ainda estamos sendo penalizados por utilizar um transmissor analógico de uma rádio para uma população de 25 mil habitantes, e que só pega naquela cidade...
JN - Com essa perseguição que eles engendraram contra você, você diz que se considera "diplomado", como é isto?
João - Eu me considero. Porque as pessoas vivem insistindo muito para eu fazer esse reconhecimento das academias. Mas existem várias academias. A Academia da Perseguição, da Repressão me deu agora um diploma. E eu sou diplomado pela Justiça Federal, pelo Ministério Público Federal, como "inimigo da ordem", quer dizer, eu sou considerado um desordeiro público. Dentro da conjuntura. Porque eles alegam que eu sou reincidente. Eu não tenho direito a nada. Quer dizer, eu pago o salário do juiz, o salário do promotor, do procurador, mas, como cidadão, eu sou cidadão só no papel. Na vida real, eu sou um réu, sou um criminoso, inclusive, inimigo da ordem pública. Isso, ao invés de me denegrir, de me diminuir, de atingir minha auto-estima, me dá um atestado de que, realmente, nós ainda precisamos fazer o doutorado. Porque eu vou continuar, aonde eu estiver, mesmo sofrendo perseguição, nós vamos continuar lutando para democratizar a palavra. Esse é o nosso objetivo. Nós ainda vamos fundar muitas rádios comunitárias. Vai ter muitos processos ainda. Até que eu chegue a mestre, de acordo com a Academia da Faculdade da Miséria. Na Universidade da Miséria eu sou considerado até doutor. Haja vista que, desde 1982, a gente funda rádios no Rio Grande do Norte. Já fundamos mais de 50. De umas foram tomados os equipamentos, o pessoal foi preso. Outras estão ainda funcionando a duras penas. (Entrevista ao Jornalista Paulo Augusto, Reg. Prof. MTb n. 11.126 (DRT/SP), titular da Coluna Radar Potiguar, Caderno de Encartes, do Jornal de Natal, edição de 24.03.08.)

quinta-feira, março 20, 2008

O moralizador

Contardo Calligaris
Ilustrada, Folha de S. Paulo, quinta-feira, 20 de março de 2008
Moralizador é quem impõe ferozmente aos outros os padrões que ele não consegue respeitar
ELIOT SPITZER era governador do Estado de Nova York até sua resignação na semana passada.
Sua fortuna política e sua popularidade eram ligadas à sua atuação prévia como procurador agressivo e inflexível contra os crimes financeiros e contra as redes de prostituição e seus clientes.
Ora, descobriu-se que ele era freguês de uma rede de prostituição de luxo e que também recorria a artimanhas financeiras para que seus pagamentos -substanciais: US$ 80 mil (R$ 140 mil)- não fossem identificados.
Esse fato de crônica (no fundo, trivial) foi para a primeira página dos jornais do mundo inteiro -aparentemente, pela surpresa que causou: quem podia imaginar tamanha hipocrisia? Esse "espanto" geral foi, para mim, a verdadeira notícia da semana.
Começou no dia em que Spitzer deu sua primeira declaração pública, reconhecendo os fatos e a culpa, ao lado de sua mulher, impávida.
No programa "360", da CNN, o âncora, Anderson Cooper, convocou dois comentaristas. Um deles, uma mulher, psicóloga ou psiquiatra, ofereceu imediatamente uma explicação correta e óbvia. Ela disse, mais ou menos: é muito freqüente que um moralizador raivoso castigue nos outros tendências e impulsos que são os seus e que ele não consegue dominar. Cooper (que já passeou pelos piores cenários de guerra e catástrofes naturais) quase levou um susto e cortou rapidamente, acrescentando que essas eram, "claramente", suposições, hipóteses etc. Não é curioso?
Em regra, prefiro as idéias que são propostas, justamente, como hipóteses ou sugestões que cada um pode testar no seu foro íntimo.
Mas, hoje, considerar a dita declaração da especialista como uma suposição parece ser uma hipocrisia pior (e mais perigosa) do que a de Spitzer.
Afinal, depois de um bom século de psicologia e psiquiatria dinâmicas, estamos certos disto: o moralizador e o homem moral são figuras diferentes, se não opostas. 1) O homem moral se impõe padrões de conduta e tenta respeitá-los; 2) O moralizador quer impor ferozmente aos outros os padrões que ele não consegue respeitar.

O moralizador

Na mesma primeira declaração, Spitzer confessou, contrito, que ele não conseguira observar seus próprios padrões morais. Tudo bem: qualquer homem moral poderia confessar o mesmo. Mas ele acrescentou imediatamente que, a bem da verdade, esses eram os padrões morais de quem quer que seja.
Aqui está o problema: o padrão moral que ele se impõe, mas não consegue respeitar, é considerado por ele como um padrão que deveria valer para todos. Com que finalidade? Simples: uma vez estabelecido seu padrão como universal, ele pode, como promotor ou governador, impô-lo aos outros, ou seja, ele pode compensar suas próprias falhas com o rigor de suas exigências para com os outros.
Quem coloca ruidosamente a caça aos marajás no centro de sua vida está lidando (mal) com sua própria vontade de colocar a mão no pote de marmelada. Quem esbraveja raivosamente contra "veados" e travestis está lidando (mal) com suas fantasias homossexuais. Quem quer apedrejar adúlteros e adúlteras está lidando (mal) com seu desejo de pular a cerca ou (pior) com seu sadismo em relação a seu parceiro ou sua parceira.
O exemplo da adúltera, aliás, serve para lembrar que a psicologia dinâmica, no caso, confirma um legado da mensagem cristã: o apedrejador sempre quer apedrejar sua própria tentação ou sua culpa.
A distinção entre homem moral e moralizador tem alguns corolários relevantes. Primeiro, o moralizador é um homem moral falido: se soubesse respeitar o padrão moral que ele se impõe, ele não precisaria punir suas imperfeições nos outros. Segundo, é possível e compreensível que um homem moral tenha um espírito missionário: ele pode agir para levar os outros a adotar um padrão parecido com o seu. Mas a imposição forçada de um padrão moral não é nunca o ato de um homem moral, é sempre o ato de um moralizador.
Em geral, as sociedades em que as normas morais ganham força de lei (os Estados confessionais, por exemplo) não são regradas por uma moral comum, nem pelas aspirações de poucos e escolhidos homens exemplares, mas por moralizadores que tentam remir suas próprias falhas morais pela brutalidade do controle que eles exercem sobre os outros. A pior barbárie é isto: um mundo em que todos pagam pelos pecados de hipócritas que não se agüentam. [Contardo Calligaris, Ilustrada, Folha de S. Paulo, quinta-feira, 20 de março de 2008] - Foto: Robert Mapplethorpe)

domingo, março 09, 2008

Panorâmica do Estado delinqüente

O livro do advogado e ex-presidente da Fundação José Augusto, François Silvestre, "As Alças de Agave", editado pelo Sebo Vermelho, e vendido pelas bancas e livrarias ao preço de R$ 40,00, tem como mérito principal, ao lado de explicitar a cena onde se deu o escândalo denominado "Foliaduto", o de fazer um recorte obrigatório para quem deseja conhecer um pouco das entranhas do poder neste Rio Grande do Norte velho de guerra.
Trata-se de uma oportunidade imperdível para todos que acompanham, se desesperam ou adoecem com a visão da mesmice, da vulgaridade, calhordice e mediocridade da cena política estadual, estampada monocordicamente e diuturnamente nos veículos da nossa mídia.
Para usar uma expressão e um linguajar apropriados à seara política potiguar e às suas vicissitudes, François Silvestre, que também é procurador do Estado, com este livro, "botou o pau na mesa". Escancarou, ou por outra, como dizem os jovens, "arregaçou".
Dada a penumbra em que vive e se reproduz a nossa política, administrada, em grande parte, por verdadeiros aleijões, e orquestrada desde sempre através de um mal infinitamente maior, que é nossa elite inepta, feroz, predadora, imprevidente, qualquer réstia de luz que ganhe visibilidade, ao mostrar parte do monstruoso mecanismo que nos rege a vida e a morte neste vale de lágrimas, será sempre bem-vinda e aclamada.

Panorâmica do Estado delinqüente

Daí a importância da fala desimpedida e autorizada de François Silvestre, neste magnífico produto da safra do Sebo Vermelho, por ser ele, não efetivamente "alguém de dentro", mas um observador astuto e qualificado que pôde conviver nas entranhas do monstro que alimentamos – a política estadual –, nos presenteando com um retrato, ainda que esmaecido, afinal, uma noção acerca do Estado delinqüente em que estamos metidos, dando subsídios para clarear uma modalidade de crime que conta com a iniciativa e a liderança de agentes públicos.
O que faz François é narrar as tramas e os cambalachos, com as tintas e as letras da modernidade, uma desordem mantida a ferro e fogo e que remonta ao passado medieval, no trabalho transgressor das elites, de sempre usufruírem do Estado autárquico em benefício próprio. Um esquema que funciona desde os tempos da Colônia e do Império, sendo que a nova elite opera através de novos métodos uma verdadeira "apropriação legalizada de bens e recursos públicos".

Panorâmica do Estado delinqüente

Como lembra Clovis Rossi, ao comentar o livro "O Estado delinqüente", de André Moysés Gaio, mestre em ciência política e doutor em história social, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, "não é que os agentes públicos se corrompam facilmente no Brasil. É pior: eles tomam a iniciativa, lideram o saque aos bens públicos". E Rossi alinha uma seqüência de fatos delituosos que nos são relatados ao infinito, onde cada vez mais aparecem implicados agentes públicos graduados.
Fazendo desfilar apenas os escândalos mais recentes, Rossi comenta: "1 - Não é mais o recrutazinho que vende um fuzil para o narcotráfico. É um coronel envolvido em desvio de verbas. 2 - Não é mais um juiz de segunda instância implicado em falcatruas. É o chefe do Poder Judiciário (caso de Rondônia). 3 - Não é mais um vereador do fim do mundo. É a cúpula do Poder Legislativo (em Rondônia, mas também no Parlamento federal, com os casos João Paulo Cunha e Severino Cavalcanti). Para não falar nas centenas de parlamentares federais apanhados como "mensaleiros" e "sanguessugas". 4 - Não é mais o policial da esquina subornado para evitar uma multa. É um delegado que fica rico e seus colegas nem percebem ou fingem que não percebem. 5 - Não é mais o policial federal comum que entra para o crime. São dois ex-superintendentes da PF." Como no retrato que François fez do Estado, comenta Rossi sobre o panorama geral: "O corolário inevitável do teorema traçado por Gaio é simples: qualquer solução para o pântano brasileiro passa, inexoravelmente, por resgatar o Estado das mãos dos delinqüentes. Fácil de falar, quase impossível de fazer."

Panorâmica do Estado delinqüente

Numa das primeiras frases do livro, François faz uma singela declaração: ‘‘Tudo o que conto aqui faz parte da minha observação sobre os fatos’’. Trata-se de algo a que nós estamos afeitos, já que observamos no dia-a-dia o modus operandi das quadrilhas no poder, sendo que, muitas vezes, não temos acesso à extensão dos fatos, nem dispomos de uma mídia que nos traga a extensão do mal cometido.
François se assemelha a Cristovam Buarque, que descortina, no artigo "A pobreza da riqueza", a vida ordinária dos nossos potentados, com os dissabores propiciados por seus roubos e apropriações indébitas: "Os ricos brasileiros são pobres de tanto medo. Por mais riquezas que acumulem no presente, são pobres na falta de segurança para usufruir o patrimônio no futuro. E vivem no susto permanente diante das incertezas em que os filhos crescerão. (...) Por causa da pobreza ao redor, os brasileiros ricos vivem um paradoxo: para ficarem mais ricos têm de perder dinheiro, gastando cada vez mais apenas para se proteger da realidade hostil e ineficiente. Quando viajam ao exterior, os ricos sabem que no hotel onde se hospedarão serão vistos como assassinos de crianças na Candelária, destruidores da Floresta Amazônica, usurpadores da maior concentração de renda do planeta, portadores de malária, de dengue e de verminoses. São ricos empobrecidos pela vergonha que sentem ao serem vistos pelos olhos estrangeiros." (Imagem:
Cristovam Buarque.)

Panorâmica do Estado delinqüente

Ao final da leitura, pode-se refletir acerca de seus personagens, sejam perdedores sociais ou supostos ganhadores. Percebe-se que, do jeito que mantemos o Estado delinqüente, não há saída da realidade para qualquer utopia ou transcendência. Percebemos simplesmente que não há possibilidade de fuga de nós mesmos nem do aqui e agora.
O livro de François serve, ainda, de apoio, como um magazine, um armazém, um acervo de informações imprescindíveis para um romance de formação, que tanto nos faz falta no RN, numa proposta de enriquecer e autonomizar nosso leitor/eleitor/contribuinte/cidadão. Um romance de formação, do alemão, Bildungsroman, em português, "romance formativo ou romance de formação"; em inglês, coming-of-age novel ou apprenticeship novel, tem importância capital, para a formação da cidadania, como nos lembra a escritora portuguesa Luísa Maria Rodrigues Flora: "No processo de afirmação e respeitabilização da forma romanesca, articulando ainda a vertente lúdica e de entretenimento exigidas pelo novo público leitor com a vertente moralista e didática tão ao gosto do Iluminismo, a inclusão no cânone literário das referidas obras revela já a passagem para um tipo de romance de cariz antropológico. Ao centrar o processo de desenvolvimento interior do protagonista no confronto com acontecimentos que lhe são exteriores, ao tematizar o conflito entre o eu e o mundo, o Bildungsroman dá voz ao individualismo, ao primado da subjetividade e da vida privada perante a consolidação da sociedade burguesa, cuja estrutura econômico-social parece implicar uma redução drástica da esfera de ação do indivíduo." (Imagem: Estátua no Edifício da Ernst & Young, em Los Angeles, EUA.)

Panorâmica do Estado delinqüente

Sobre a importância da obra, podemos citar dois depoimentos, que corroboram o que aqui dissemos. Um, do dono do Sebo Vermelho, Abimael Silva (Foto: Divulgação), ao afirmar: ‘‘Este livro tem a importância de ser um documento sobre a história política do Rio Grande do Norte’’; assim como a declaração do deputado estadual Fernando Mineiro (PT), ao confirmar: ‘‘O livro nos brinda com meio século de história do Rio Grande do Norte. Leiam.’’
Avesso aos holofotes, que tanto atrai os usurpadores e as falsas lideranças do nosso métier político, François não quer nem ouvir falar sobre badalações em torno do livro, daí ter evitado as efemérides próprias das colunas sociais, dispensando os salamaleques de um lançamento: ‘‘Eu não gosto nem concordo com essa coisa de lançamentos de livros. Não concordo com essa cultura de eventos que nunca me agradou’’, disse a um jornal local.
Além do próprio Sebo Vermelho, na avenida Rio Branco, 705 (Tel: 9401-9008), "As alças de Agave" pode ser encontrado nas livrarias Potylivros, Siciliano e na livraria da Cooperativa da UFRN, na Locadora 100% Vídeo e nas bancas Prática, Tio Patinhas e Cidade do Sol.

As alças de agave

Trecho
"Em Wilma, eu decidi não votar após o comportamento que ela adotou sobre o foliaduto. Eu comparo o seu gesto e do seu governo, após o evento lamentável das bandas fantasmas, com aquela anedota do ladrão de porcos. O larápio trazia um porco preso às costas, quando avistou o dono do porco roubado. Não tendo como desculpar-se, dada a evidência, começou a gritar: "Socorro... socorro... tire esse bicho daqui!". Era preciso o dono do porco ser bastante idiota para acreditar que o porco era um agressor e não um animal roubado
"Dessa forma agiu Wilma e seu governo. Para salvar os seus aliados e pupilos, ela quis fazer a sociedade acreditar que tudo ocorrera na Fundação José Augusto. Decisão, operação e liberação ilegal de grana. Se não foi cúmplice na execução do foliaduto, como eu acho que não, foi incorreta no comportamento posterior. Desonestidade não é apenas roubar dinheiro. Não. Há desonestidade ideológica, doutrinária, política, religiosa, social, cultural. Wilma quis salvar os seus à custa da desgraça alheia. Não teve escrúpulos em simular uma surpresa sobre o caráter dos seus auxiliares e cobrar culpabilidade de uma instituição. Não reconheço inocência nos meus auxiliares. Sem a participação deles não teria ocorrido o fato, pelo menos no âmbito da Fundação. Só que eles foram engrenagem secundária na máquina que produziu a corrupção. Foram acólitos. A chefia estava noutro lugar. Na soleira do governo. Digo isso porque resta sobejamente provado, tanto pela confissão dos envolvidos quanto pela apuração do Ministério Público. Os meus auxiliares deixaram de ter essa condição de inocentes desde a hora em que os fatos foram aclarados. Afastei-os e abri a sindicância pertinente. Uma antiga amizade, com ambos, virou distanciamento insanável. Ambos sem pregresso condenável, pelo menos do meu conhecimento. E os dela? Não são apenas auxiliares. São auxiliares administrativos, liderados políticos e pupilos ideológicos. E continuam sob sua guarda e proteção. Ela disse ao amigo Deusdeth Maia que eu coloquei na Fundação pessoas de passado reprovável e tinha conhecimento disso. Não é verdade. Mas eu posso dizer que ela colocou e mantém o mesmo vínculo de aproximação com os seus auxiliares envolvidos no folioduto. Inclusive com outros auxiliares promovendo um festival circense de apoio público e carnavalesco para homenagear um dos envolvidos, após o seu depoimento. Numa agressão à sociedade e à cidadania. Foi por isso que não votei nela. Também não votei no outro. E vou explicar o porquê." (Livro As Alças de Agave, François Silvestre, Sebo Vermelho, 2008, Págs. 136-137). (Imagem: "Ítalo Gurgel (atrás da governadora) trabalhou na campanha eleitoral e freqüentava a casa de Wilma." Crédito Foto: Luis Morais: Tribuna do Norte.)