quarta-feira, junho 04, 2008

A privatização do desastre

CULT - Um dos principais objetivos do seu livro é mostrar que os conceitos de neoliberalismo e democracia são internamente incompatíveis, certo?
Naomi Klein
- O propósito principal do livro é contestar a alegação central da máquina de propaganda neoliberal, que procura identificar pessoas livres com o que eles chamam de mercado livre. Tento mostrar que democracia e neoliberalismo entram diretamente em conflito.
CULT - Essa forma de capitalismo não nasce da liberdade e sim do uso da força...
NK
- Sim, uso da força e uso de crises. A razão pela qual me concentro em crises é porque elas criam uma zona livre de formas democráticas, um estado de emergência no qual regras democráticas não se aplicam. Mesmo que seja uma democracia formal, no papel, os agentes políticos podem suspender tais regras para impor suas medidas.
CULT - Por que a implementação dessas medidas depende tanto de crises, sejam naturais ou forjadas? Por que precisariam até mesmo do uso tirânico de forças?
NK
- Porque as pessoas resistem a essas medidas quando têm a oportunidade e a possibilidade de se organizar. No livro, cito o economista John Williamson, que criou a expressão "Consenso de Washington". Ele diz que "devemos começar a pensar em aumentar as crises de hiperinflação a fim de colher os benefícios da reforma", em referência direta ao Brasil como possível candidato a essa estratégia - o que achei muito interessante. A razão pela qual os estados de exceção ou de emergência são tão importantes vem do fato de que as pessoas se organizam para proteger seus interesses. Essa é a ironia. A teoria do mercado livre está baseada na idéia de que as sociedades devem ser organizadas de tal maneira a permitir que as pessoas lutem por seus próprios interesses. O problema é que isso é válido apenas parcialmente, pois quando as pessoas defendem alguns interesses específicos, como melhoria de condições de trabalho, manutenção de serviços públicos, entram em ação as medidas de exceção. Não é uma idéia complicada. As táticas de choque são empregadas porque as políticas neoliberais não têm o apoio da maioria. Algumas peças da plataforma têm apoio, mas, em geral, privatizações, cortes de gastos em serviços sociais, livre comércio, não são medidas populares. De modo que é preciso haver estratégias alternativas para contornar a democracia e é aí que as crises entram.
CULT - Desde o começo do livro você deixa claro que a expressão "doutrina do choque" não se trata apenas de uma metáfora. De onde veio esta idéia de propor a relação entre as técnicas de tortura da CIA e a implementação da idéias econômicas de Milton Friedman?
NK
- Parte veio por morar na Argentina, quando começou a invasão do Iraque. Era um momento muito particular no país, em 2002, porque se vivia uma crise econômica e, ao mesmo tempo, a abertura para uma discussão muito mais abrangente sobre o período da ditadura do que antes. A Argentina tem um movimento de direitos humanos muito forte, mas nos anos 1990 esses grupos ainda eram politicamente marginais. O debate sobre o período da ditadura estava concentrada na questão dos direitos humanos, mas quando a economia entrou em colapso, a discussão foi ampliada e as pessoas começaram a fazer conexões entre o modelo econômico que fracassou de maneira tão retumbante e o período da ditadura quando esse modelo foi introduzido. E o que se ouvia constantemente era que essas políticas econômicas foram instauradas mediante o uso da violência, do choque. Quando a guerra do Iraque começou, os argentinos fizeram comparações entre o que aconteceu no país nos anos 1970 e o que estava acontecendo no Iraque. Foi isso que me fez querer entender as conexões entre os diversos tipos de choque, pois já estavam sendo feitas nas ruas da Argentina. Era uma maneira nova de interpretar a história - eu sabia da ditadura militar, mas não sabia que a agenda econômica era tão clara. No livro cito a carta aberta de Rodolfo Walsh à Junta Militar. Naquele tempo, em Buenos Aires, essa carta tomou vida própria: era lida em parques, assembléias de bairros, na frente das casas de generais, no rádio. Isso me fez querer entender essas conexões e querer viajar ao Iraque. Alguns amigos jornalistas argentinos, especialmente Claudia Acuña, descreveram como era difícil perceber as razões por trás do terror quando se está vivendo a situação. No momento em que dizia isso, Paul Bremer chegava ao Iraque e anunciava uma transformação econômica radical, dizendo que o país estava aberto para negócios. Mesmo assim, toda a atenção jornalística estava concentrada na guerra e não no programa econômico. Então senti que, depois de ter aprendido essa lição na Argentina, tinha a responsabilidade, como jornalista e escritora, de ir ao Iraque e pesquisar a verdadeira causa da violência. Foi depois dessa experiência que li o manual de interrogatório da CIA, pois eu estava no Iraque quando estourou o escândalo de Abu Ghraib.

Nenhum comentário: