domingo, agosto 12, 2007

By, by, País decente...

FOLHA - Na homenagem que lhe prestou o sociólogo Chico de Oliveira, ele diz que tomou o seu ensaio "Fim de Século" como espécie de plataforma de pesquisa para o "Ornitorrinco" -texto em que ele trata do casamento encalacrado e sem superação da modernidade e do atraso brasileiros. No seu ensaio, aparece um tipo social novo, chamado "sujeito monetário sem dinheiro". O sr. poderia explicar?
ROBERTO SCHWARZ - O "sujeito monetário sem dinheiro" não é uma expressão minha, é de Robert Kurz [ensaísta alemão de esquerda]. Ela designa as massas humanas deixadas ao deus dará pelas industrializações interrompidas do 3º Mundo.
No período anterior, do desenvolvimentismo, a esperança de emprego e de integração à vida moderna havia atraído os pobres para as cidades, arrancando-os ao enquadramento rural. Quando o motor desenvolvimentista não teve força para absorver essas populações, estava criada a figura do sujeito monetário sem dinheiro: multidões "modernizadas", quer dizer, cujas vidas passam obrigatoriamente pelo dinheiro, que entretanto não têm salário, sem falar em cidadania plena. O "Ornitorrinco" de Chico de Oliveira fez um retrato atualizado desse bicho que não é isso nem aquilo e que somos nós. Uma sociedade que já não é subdesenvolvida, não porque se desenvolveu, mas porque deixou de ser tensionada pelo salto desenvolvimentista; e que não é desenvolvida, pois continua aquém da integração social civilizada.
FOLHA - Esses "sujeitos monetários sem dinheiro" são os (des)agregados de hoje?
SCHWARZ - De fato, os excluídos de hoje são consumidores sem meios para consumir, o que os obriga a algum grau de ilegalidade. Se não há emprego e tudo tem preço, como vão fazer? O paralelo com a categoria dos "agregados", característicos de nosso século 19 escravista, é possível, se forem guardadas as diferenças. Também eles subsistiam no interior da economia monetária e meio à margem dela.
Ermínia Maricato viu a continuidade entre os dois momentos, ligada ao interesse que o sistema de poder sempre teve em manter os pobres na precariedade, pendentes de alguém com mando. No começo do processo, em 1850, a Lei de Terras dificultou a pequena propriedade rural, que seria um fator de legalidade civil. E até hoje não houve vontade política para regularizar a propriedade em favelas e cortiços, onde a massa pobre vive imersa na ilegalidade, achacada de inúmeras maneiras e naturalmente achacando por sua vez.
Como explica Maria Sylvia de Carvalho Franco, os agregados eram homens livres e pobres vivendo como podiam no limbo social deixado pela ordem escravista. Se o grosso do serviço cabia aos escravos, os demais pobres ficavam sem meio regular de ganhar o seu sustento. Nem escravos nem senhores, eles eram economicamente supérfluos, o que os levou a desenvolver traços peculiares.
No mundo rural, a sua figura elementar era o morador, vivendo de favor na terra de um proprietário, a quem devia gratidão e contraprestações, e de quem não recebia salário, no máximo alguns cobres. No mundo urbano, extensão do rural, essa relação se entrelaçou com a civilização moderna, diversificando-se notavelmente, mas conservando o traço básico. Persistiam o paternalismo, a patronagem, o clientelismo, o apadrinhamento, o filhotismo, o personalismo etc. -cuja verdade, no pólo fraco da relação, eram a dependência pessoal e a falta de garantias.
Especialmente no Rio de Janeiro, a massa sem ocupação certa, obrigada a levar a vida ao acaso dos serviços, dos favores, das proteções e das gatunagens criou um modo de ser próprio, analisado por Antonio Candido em "Dialética da Malandragem". A apropriação do mundo moderno dentro das pautas do clientelismo e da informalidade locais, um processo vasto e surpreendente, produziu uma nota "nacional" inconfundível, explorada em profundidade por Machado de Assis.
Basta ler o teatro de Martins Pena ou as "Memórias de um Sargento de Milícias" para saber que em meados do século 19 o entra-e-sai brasileiro entre os campos da norma e da infração, entre o modelo europeu e os desvios locais, já era uma trivialidade conhecida de todos. Se estou lembrado, há uma baronesa em Martins Pena que tem empenhos na alfândega para levar para casa os melhores escravos apreendidos do contrabando. Assim, a irregularidade e o salve-se-quem-puder em que vivem os pobres é um lado da moeda; o outro é a prerrogativa que têm os ricos de abusar e transgredir, "legitimada" às vezes pelo exemplo popular.
Dito isso, a exclusão não é a mesma em nossos séculos 19 e 21, embora haja em comum a falta de dinheiro e de direitos. Num caso, o contexto era a sociedade escravista, que a certa altura se torna abolicionista e, decênios depois, desenvolvimentista, aspirando à dignificação do trabalho e à superação da herança colonial; no outro caso, é a vitória avassaladora do capital sobre os movimentos operários, carregada de conseqüências sociais regressivas, entre as quais uma certa desmoralização de alto a baixo, proveniente da nova unilateralidade. Com idas e vindas, abolicionismo e desenvolvimentismo eram ascensionais; ao passo que o movimento atual, a despeito de dois presidentes originários da esquerda, participa da vaga mundial de aprofundamento do capitalismo e de sua destrutividade social.

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