domingo, agosto 12, 2007

By, by, País decente...

FOLHA - Como se passou de uma forma social -a do favor- a essa outra, nova? Qual o significado dessa mudança?
SCHWARZ - Quando escrevia os seus extraordinários artigos abolicionistas, Joaquim Nabuco tinha claro o laço entre escravidão, latifúndio e degradações ligadas à dependência pessoal, no campo e na cidade. Nas palavras incisivas do próprio Nabuco, era um quadro que diminuía o valor de nosso título de cidadão. Desde então, até a crise do nacional-desenvolvimentismo, nos anos 1970, a transformação dos excluídos em assalariados rurais, operários e cidadãos fez parte do ideário progressista. Sobretudo através da industrialização e da reforma agrária, que prometiam reformar o país, acabando com a liga de mandonismo, miséria, clientelismo sub-cidadania etc., que nos separavam da modernidade. Com a globalização estas expectativas passaram por uma redefinição drástica. Para desconcerto geral da esquerda, a modernização agora se tornava excludente e reiterava a marginalização e a desagregação social em grande escala. Para quem não sabia, o progresso do capital e o progresso da sociedade podiam não coincidir.
A superação da marginalidade pelo trabalho ordeiro é um tópico antigo. Todos conhecem o samba getulista da conversão do malandro: "Quem trabalha é que tem razão / Eu digo e não tenho medo de errar / O bonde São Januário / Leva mais um operário / Sou eu que vou trabalhar". A letra gabava o trabalhador à custa do malandro, mas os dois lados da alternativa eram simpáticos. Ora, o testemunho dos artistas recentes aponta numa direção mais escura. No romance de Paulo Lins assistimos à substituição da favela pela neofavela, em que os traços comparativamente amenos da marginalidade tradicional são escorraçados pela violência nova e maciça do narcotráfico, em contexto de exclusão com consumismo. Em "Carioca", o corajoso CD de Chico Buarque, o cantor empresta a voz, como se fosse um telão, ao avesso fosco e temível da Cidade Maravilhosa, que não convida ao canto. A postura é ainda mais admirável num artista que tem tanto público a perder.
FOLHA - No seu ensaio "Cultura e Política", o sr. fala de idéias que são desenvolvidas antes de 64, no período democrático, e usadas pela esquerda no período entre o golpe e 68. Seria possível fazer uma analogia entre esse uso e a lógica das "idéias fora do lugar"?
SCHWARZ - A derrota da esquerda foi tão completa, primeiro pelo golpe militar, depois pelas armas e enfim pelo curso das coisas, que hoje parece extravagante valorizar a sua contribuição intelectual. Mas não creio que esta última tenha sido uma "idéia fora do lugar", uma fachada caricata, alheia às necessidades e aos sofrimentos reais. Há um bom livro à espera de ser escrito, que sintetize com isenção a obra por assim dizer coletiva de Caio Prado Jr., Celso Furtado, Antonio Candido, Fernando Henrique Cardoso, Paulo Emilio Salles Gomes, Fernando Novais e certamente outros que conheço menos.
Com ponto de fuga socialista, o conjunto colocou em pé uma idéia complexa e muito real de subdesenvolvimento, alcançada a força de independência de espírito e abertura para a realidade. Saiu a campo contra o conservadorismo brasileiro, a esclerose comunista, o peso ideológico do "establishment" internacional, com passos adiante em cada uma dessas frentes. Não se tratava mais de identidade nacional como anteriormente, mas de assumir uma posição particular e estrutural no capitalismo contemporâneo, com impasses que não são apenas sinais de atraso, deficiências locais, mas pontos de crise e limites da ordem mundial. Foi um alto momento de inserção e de desprovincianização da vida intelectual brasileira.
Em 1964 uma parte da esquerda se concentrou na crítica aos compromissos e às ilusões do Partido Comunista no período anterior, que haviam conduzido à debacle. Em política, sob influência de Cuba, a radicalização levou à luta armada, duramente batida. No campo estético ela se diversificou e teve resultados notáveis, como os filmes de Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade, as canções de Caetano Veloso e Chico Buarque, os espetáculos dos Teatros de Arena e Oficina em São Paulo, a teorização de Sergio Ferro sobre arquitetura.
Seja como for, estamos longe da comédia ideológica, do arranjo do liberal-escravismo clientelista designado nas "idéias fora do lugar".

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