domingo, agosto 12, 2007

By, by, País decente...

FOLHA - As relações de que participam esses "sujeitos monetários sem dinheiro" significam uma superação da relação perversa do favor?
SCHWARZ - A troca de favores em si não tem nada de perverso. É uma relação de prestação e contraprestação em que não entra o dinheiro. Quando é decente, é das coisas boas da vida. Ela fica perversa quando é muito desigual, como entre um proprietário e um desvalido, ou quando é uma cumplicidade anti-social entre ricos, para burlar a lei e levar vantagem. Quando serve à contravenção dos pobres também não é bonita, mas não é o mesmo, pois ajuda os de baixo a contornar a necessidade e a desigualdade.
O que tornava perversa a relação, no século 19 brasileiro, era algo mais particular. Como o essencial do serviço era feito por escravos, o mercado de trabalho era incipiente, obrigando os homens pobres a buscar a proteção de um proprietário para tocar a vida. O proprietário, por seu lado, ficava à vontade para favorecê-los, como um senhor personalista, à antiga, a que é devida gratidão, ou para desconhecê-los, como um cidadão moderno, que não está nem aí, ou melhor, que não deve nada a ninguém. Essa assimetria vertiginosa entre as classes, em que, dependendo do capricho dos ricos, os pobres podiam ser favorecidos ou resvalar para o nada, de fato tornava a relação de favor iníqua. Tratava-se de uma perversão estrutural, que Machado explorou como ninguém.
Você pergunta se essa relação foi "superada" pelos sujeitos monetários sem dinheiro. É exagero falar em superação onde o ruim foi substituído pelo que não é bom. Superação civilizadora teria havido se o paternalismo e as relações de clientela tivessem sido derrotados pela generalização do trabalho assalariado, com sindicalização maciça, conquista de direitos sociais e renegociação da parte do trabalho na vida nacional.
Não foi o rumo que a história tomou. Algo desse tipo talvez tenha estado na ordem do dia no começo dos anos 1960. Quem tem idade lembra da grita da classe média que via secar o reservatório das empregadas domésticas. Mesmo com salário menor, as moças tinham orgulho de ser operárias. Preferiam o jugo impessoal na fábrica aos caprichos humilhantes das patroas.
Como hoje está na moda achar que 1964 não foi nada, não custa lembrar que Lincoln Gordon, o embaixador americano na época, reconheceu que o golpe militar brasileiro foi um momento importante da Guerra Fria. Refletindo sobre o golpe à luz da irrisão tropicalista, que veio na sua esteira, um "brasilianista" me observou que nossa virada à direita teve papel precursor e deu ensejo à ordem pós-moderna, o que achei inesperado e sugestivo.
Seja como for, estavam se instalando as condições de despolitização e ulterior administração da pobreza. Para não perder o pé, é preciso reconhecer que esta -a administração da pobreza- é melhor do que nada e que a miséria na favela é preferível à miséria rural.
É o gênero de comparação entre patamares de desgraça que esvazia a idéia de progresso, mas que ainda assim é indispensável. Reconhecida pois uma espécie de progresso nesses decênios, digamos que o que desapareceu foi a perspectiva do progresso orientado e acelerado, fruto do conflito e da consciência coletiva, que tornasse o Brasil um país decente em tempos de nossa vida. Mal ou bem, era essa a aspiração da esquerda.

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