domingo, agosto 12, 2007

By, by, País decente...

FOLHA - Esta nova ordem em que vivemos produziu narrativas que dêem conta de suas relações?
SCHWARZ - Por que não colocar a pergunta ao contrário? Digamos que a nossa narrativa custou a entrar em sintonia com a nova ordem e a receber as suas energias.
No seu discurso de posse, em 1995, Fernando Henrique Cardoso sustentou que o Brasil não era mais um país subdesenvolvido, e sim um país injusto. Noutras palavras, os impasses estruturais seriam coisa do passado e o que viria pela frente seria uma sociedade mais racional e tranqüila, inserida no progresso mundial. O otimismo não convenceu todo mundo, mas no geral o debate político e estético seguia morno.
Nesse ambiente, o filme de Sergio Bianchi "Cronicamente Inviável" foi um pequeno escândalo que fez renascer a discussão. O desconforto e o interesse despertado indicavam que a forma artística havia restabelecido o contato com a realidade. Em lugar de luta de classes, o filme mostrava a desigualdade social degradada, em que os dois pólos haviam virado lúmpen e se mereciam mutuamente -uma posição inédita na cultura brasileira, que sempre confiara seja na pureza popular, seja na missão tutelar das elites. De um lado, trabalhadores desmoralizados pelo desemprego e rendidos ao imaginário burguês; de outro, uma burguesia ressentida e lamentável, invejosa de suas congêneres do Primeiro Mundo, queixosa de não morar lá, além de amargada com a insegurança local, que azedou os seus privilégios.
Em suma, Bianchi recolheu os resultados não-programados da abertura econômica de Collor, com a qual se iniciara o período contemporâneo do Brasil. As classes sociais haviam sido expostas à competição global: os trabalhadores perdiam as condições de luta, ao passo que o projeto nacional deixava der ser uma carta no jogo da burguesia. Com variações, uma constelação desse tipo rebaixado conferiu atualidade e gume a uma batelada de filmes e de espetáculos off-teatrão do período. Com grande sucesso mas sem causar muita discussão, esse ângulo politicamente incorreto havia sido antecipado por Chico Buarque, em "Estorvo".
Ele vem sendo explorado com maestria artística notável no minimalismo poético de Francisco Alvim.
FOLHA - A noção de idéias fora do lugar pressupõe uma perfeita adequação entre estrutura e superestrutura que talvez só tenha ocorrido nos textos de Marx (e em alguns pontos da Europa). O resto do mundo não estaria então fora do lugar? Esse ponto de vista não reflete uma visão eurocêntrica marxista, a ver o Brasil como um defeito?
SCHWARZ - É como você diz, o resto do mundo estava fora de lugar. Em palavras de Gilberto Freyre, o século 19 vivia "sob o olho do inglês", ou também do francês. O modelo liberal era inalcançável para a grande maioria das demais nações, cujas condições eram outras, mas era também indescartável, porque representava a tendência de ponta no sistema internacional. São contradições objetivas. Em "Origens do Totalitarismo" Hannah Arendt menciona o ressentimento contra o padrão inglês e francês na Europa de Leste e vê nele uma predisposição para o fascismo. No século 20 o modelo norte-americano e ultimamente a fórmula neoliberal funcionaram de maneira análoga, como paradigmas quase incontornáveis.
Parafraseando Marx, as idéias da classe dominante na nação hegemônica do período tendem a ser dominantes ou pelo menos presença obrigatória nas nações periféricas. Quem as adota tais quais é apologista ou deslumbrado. Quem pensa que as pode desconhecer coloca-se intelectualmente fora do mundo. Dentro do possível, tudo está em relacionar-se com elas de maneira judiciosa, reconhecendo a sua parte de necessidade, mas sem perder de vista as realidades e os interesses próprios. Na verdade, quem foi eurocêntrico e depois impôs o padrão americano foi o capitalismo. O marxismo, que é a sua teoria crítica, acompanha a voragem concentradora, mas não adere a ela.
FOLHA - Sua crítica ao tropicalismo foi realizada "a quente", sob forte influência de uma visão de esquerda. Censurava no movimento o seu "esnobismo de massa", sua tendência a fixar a imagem do Brasil como absurdo, sem apontar para o futuro. Você faria reparos a essa perspectiva? Como recebeu a leitura que o próprio Caetano fez do processo em "Verdade Tropical"?
SCHWARZ - Com sua licença, vou desfazer alguns mal-entendidos em sua pergunta. Não tenho nada contra o esnobismo, muito menos contra o esnobismo de massa, que são formas de insatisfação e de atualização. Também não censurei a alegoria tropicalista do Brasil absurdo. Pelo contrário, procurei mostrar o seu fundamento histórico e seu acerto artístico. Deliberadamente ou não, ela fixava e fazia considerar a experiência da contra-revolução vitoriosa, ou da modernização conservadora, que em vez de dissolver o fundo arcaico do país o reiterava em meio a formas ultramodernas. As alegorias do absurdo-Brasil, com seu poço de ambigüidades, com seu vaivém entre a crítica, o comercialismo e a adesão, são o achado e a contribuição do movimento. Ainda assim, em estética, e não só nela, os acertos têm o seu custo, que é parte do problema. É este o campo explorado pela análise dialética, que procura desentranhar alguma verdade do emaranhado artístico. Se não me engano, a pergunta cedeu ao estereótipo do que seja a crítica de esquerda.
"Verdade Tropical" é uma obra incomum, que vai ficar. A sua qualidade é feita, entre vários méritos, de suas fraquezas. Quem não tenha olho para estas passará batido pelo incômodo e pelo alto grau de contradição do livro. São eles a sua principal força, a sua energia histórica, maior do que os seus méritos literários óbvios. Algo semelhante vale para o próprio Tropicalismo." (Folha de S. Paulo, Ilustrada, sábado 11 de agosto de 2007. Ver na FSP, para assinantes: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1108200707.htm+-)

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