terça-feira, dezembro 05, 2006

A sina dos cães sem pluma

Apesar de não ter encontrado ainda algo consistente para matar a fome, a menina já considerava encerrada e satisfeita sua coleta naquela praça. Iria chamar os amigos, Ritinha e Donizete, ambos da sua idade, para prosseguirem a caça em outras praças do centro velho, onde encontrariam depósitos de lixo semelhantes. O lixo da praça Pedro Velho era mais procurado, porque mais promissor. Eram detritos disputados pelas falanges de mendigos, porque oriundos dos quitinetes de uma classe média formada por pequenos e médios servidores do Estado, assalariados, pagos com valores de pouca monta, mas com ordenados certos e recebidos em data precisa. Tal fato lhes permitia "luxar", na aquisição desenfreada de pequenos caprichos. Amontoar o lixo significava para eles até um sinal de status. Essa disposição se aliava ao fato de a prefeitura há muito ter abandonado a coleta no centro histórico, apesar de engordar com dinheiro público a receita de várias empresas contratadas sem licitação para o serviço, alienando os exércitos de garis terceirizados cuja sobrevivência daquilo dependia.
Ter o lixo como elemento principal na composição da paisagem urbana, para a mentalidade reinante no seio da comunidade, os distinguiria da escumalha social, o grosso da ralé que compreendia os habitantes da capital, já que ainda tinham do que se desfazer. De mais a mais, como galés sociais, eram forçados a viver para azeitar a máquina administrativa do Estado, enclausurados, contudo, para evitar ao máximo o contato com mais de dois terços da população de Natal, que alcança, neste ano de 2025, contando com as cidades que formam a Região Metropolitana, perto de dois milhões de habitantes, entregues à desocupação e ao abandono. Na capital, resistiam como moradores nessa área da cidade velha – que compreendia a Cidade Alta, Rocas, Ribeira, Santos Reis, praias do centro e até Petrópolis e Tirol, mas que também se estendia pelos bairros do Alecrim, Quintas e suas cercanias, ao longo do rio Potengi, transformado em esgoto a céu aberto, por não terem condições de pagar aluguéis nas praias do litoral norte e sul. Nessa área do litoral se refugiava a reduzida e bem-nutrida burguesia, protegida até os dentes em condomínios de luxo, absolutamente fechados e resguardados por pesados esquemas de segurança.

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