terça-feira, dezembro 05, 2006

A sina dos cães sem pluma

Ao contrário dos moradores desses condomínios, que ainda tinham uma despensa com provisões e o que jogar fora, Rosalinda, Ritinha e Donizete formavam uma multidão de crianças, aposentados e adultos desocupados e inutilizados, que viviam na miséria, sem o registro de qualquer renda.
Na praça André de Albuquerque, onde a cidade nascera, a menina sabia que podia ter um momento especial, nesta manhã luminosa de dezembro, que era poder topar, de repente, não com Papai Noel, lenda que não faz parte de sua cultura, mas com Vadinho, um flerte que vinha alimentando há algum tempo. Suspirava pelo garoto negro de cerca de 10 anos, morador da Favela do Mosquito, que ali fazia ponto com seus colegas de milícia. Não dava bola para a fama de punidor que Vadinho adquirira. De mais a mais, todos os militantes, na sua faixa de idade, agiam praticamente de maneira igual, sempre a postos para as operações militares, matando gente, batendo, roubando.
Menino que cresceu na favela sem ter a quem recorrer, assistia e protagonizava todos os dias o drama da sua geração, tendo como palco uma terra de ninguém, onde nunca houve oferta de empregos, postos de saúde, creches, escolas e as alternativas de lazer sempre fora o bangue-bangue.
A própria existência de TVs e rádios comunitárias não trouxera a conscientização e organização da população, embora fosse latente o desejo de neutralização dos meios de comunicação instalados pelos políticos, que mantinham o controle social sobre parte da população favelada existente.
Vadinho já sabia, apesar da pouca idade, que era parte de um dos povos mais violentos do mundo, cuja feição perversa estava sempre mudando. Para pior. Não tendo escolas para freqüentar ou exemplos virtuosos a seguir, as lições que mais cedo recebiam era a de garantir a sobrevivência, de preferência tirando dos ricos ou dos que tinham. Por isso os jovens favelados conheciam, desde cedo, os labirintos da cidade, sem anteparos para os apelos irresistíveis da mídia, na sua apresentação incansável dos melhores produtos para uma vida de classe. Despertada sua capacidade de consumir, partiam para a caça, não importando o preço a pagar, pelo consumo de drogas, roupas melhores, tênis de marca, mesmo falsificada, trocando os livros por um revólver. Desde cedo acompanhara o pai a fazer justiça, vendo a atuação dos tribunais e os justiçamentos da periferia, onde assistia com curiosidade às execuções sumárias e aos espancamentos brutais.
Era extensa a relação dos moradores do seu bairro que sido vítimas de homicídio. Como Rosalinda, Vadinho até aquela idade não conhecia um centro esportivo, uma peça de teatro ou jamais assistira a uma sessão de cinema. A diversão e as possibilidades de reflexão eram oferecidas pelos inúmeros bares no entorno de sua casa e pelas igrejas pentecostais que enxameavam a Favela do Fio.

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