quinta-feira, setembro 20, 2007

Pra quê Senado?

Pela democracia, o Senado deve acabar
RUI FALCÃO
FSP, São Paulo, quinta-feira, 20 de setembro de 2007
A existência do Senado é um desserviço à democracia brasileira. É chegada a hora de discutir o fim do sistema bicameral do país
"A ABSOLVIÇÃO do senador Renan Calheiros pode contribuir, paradoxalmente, para aperfeiçoar a democracia se a reflexão sobre o escândalo transpuser as considerações de caráter circunstancial.
O episódio repulsivo oferece a oportunidade de avançar no diagnóstico e na solução da crise da representação. Uma crise que se manifesta no fosso crescente entre a vontade dos representantes e a dos representados e se materializa na existência do sistema bicameral brasileiro.
Com isso, não se sugere ignorar a excrescência da sessão e votação secretas: a publicidade dos atos parlamentares é instrumento inalienável do exercício da cidadania e uma exigência da República e do Estado democrático de Direito. Com o sigilo, os senadores rebaixaram a política à "arte de impedir as pessoas de participar de assuntos que propriamente lhes dizem respeito", no entender de Paul Valéry.
Como parlamentar e militante petista, expresso minha divergência também quanto a se ter liberado a bancada do PT para votar como quisesse, decisão que serviu de pretexto a setores da mídia e da oposição para atribuir ao partido a responsabilidade pela absolvição. Da mesma forma, é inexplicável a abstenção: a quem não estava convencido da quebra de decoro cabia a opção conseqüente de votar pela absolvição.
Mas o que mais importa é constatar que a existência do Senado Federal é um desserviço à democracia brasileira. Não apenas por esses episódios de denúncia de corrupção mas também pela fraude ao pacto federativo, ao sistema representativo, pelo seu poder revisor ante a Câmara dos Deputados e -a partir de 1988- ampliado com a faculdade de propor leis.
Como instituição, o Senado foi introduzido no Brasil à época do império e ainda hoje traz consigo vestígios do mando monárquico e cacoetes oligárquicos das velhas repúblicas. Assim, além de casa legislativa, o Senado tinha atribuições de corte judicial, para os delitos cometidos por membros da família imperial, ministros, conselheiros, secretários, senadores e deputados. Ou seja, os caminhos usuais da Justiça não convinham a esse tipo de gente, que demandava foro especial.
É chegada a hora de discutir o fim do sistema bicameral do país, eliminando o Senado e definindo um modelo de representação unicameral adequado e igualitário, que assegure a diversidade e a expressão federativas. A duplicidade de funções no Legislativo federal contribui para distorcer duplamente o sistema de representação proporcional. Primeiro, por consagrar uma desproporção entre o percentual de eleitores de cada Estado e o de cadeiras na Câmara dos Deputados. Segundo, por associar a essa situação, agravando-a ainda mais, o caráter não proporcional do número de cadeiras no Senado, onde os Estados contam com o mesmo número de representantes, independentemente da variação no número de seus eleitores.
A Casa revisora, que representa as unidades da Federação, dispõe de mais poder que a Casa dos representantes do povo, pois sobre a vontade da Câmara de aprovar prevalece a vontade do Senado de rejeitar.
Não é de esperar que tal distorção, geradora de privilégios antidemocráticos, seja corrigida por iniciativa de seus beneficiários diretos -os parlamentares, em especial os senadores.
Daí a necessidade da convocação de uma assembléia constituinte exclusiva para a reforma política, que se oriente pela necessidade de prover de substância democrática as instâncias de representação.
Enquanto a constituinte exclusiva não vem, o projeto de reforma política em tramitação na Câmara poderia incluir algumas mudanças paliativas, como a de confiar ao Senado exclusivamente as funções referentes às questões da Federação e do Estado.
Além disso, por que não reduzir o mandato senatorial de oito para quatro anos, como ocorre com os demais cargos eletivos, e sujeitar os suplentes ao escrutínio do voto?
Por que não eliminar o sigilo nos atos parlamentares?
Há, pois, iniciativas a tomar, mais adequadas do que a proposta pueril de voto nulo nas eleições para o Senado. Pois, enquanto existir, o Senado, a despeito de sua malformação, representará um espaço institucional de disputa política que, "malgré lui", deve ser utilizado pelas forças progressistas para fazer avançar a democracia brasileira. "
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RUI FALCÃO, 63, advogado e jornalista, é deputado estadual pelo PT. Foi deputado federal, presidente do PT e secretário municipal de Governo de São Paulo (gestão Marta Suplicy). Texto publicado na Folha de S. Paulo. (Acesso para assinantes.)

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