sexta-feira, abril 06, 2012

Estado privado



Ilustração: político brasileiro
A instituição estatal, nessa nova etapa da história, foi pensada para servir o público, a coletividade de uma nação, e com esse formato ele se espalhou da Europa para o mundo, atingindo-nos em decorrência de nossa sina de produto das ações de povos estrangeiros.
Não incorporamos, contudo, o modelo mais puro da ideologia do estado, nem assim nos foi passado. Como é óbvio, as influências de nossas condições de existência teriam que temperar o modelo alienígena com nossas raízes e história.
E essa mistura, aparentemente, não nos legou o que se esperava do civismo. Desde a fundação oficial de nosso estado, convivemos com a temática presente do peculato, da corrupção e do suborno, desvirtuando a própria essência do que seja instituição estatal, que por aqui nasceu e se desenvolveu como uma espécie de "casca" sobre grave ferida sociológica.
Nossa construção das máquinas administrativas sequer respeitou o afã religioso de que nos orgulhamos desde sempre, menosprezando milenar advertência de Moisés ao povo de Israel, no antigo testamento, para que "não perverta o direito, não faça diferença entre as pessoas, nem aceite suborno, pois o suborno cega os olhos e falseia a causa dos justos" (Dt, 16-17).
José Murilo de Carvalho, em livros que ignorar quase não tem perdão (A formação das almas e Os bestializados), lembra-nos que no Brasil da virada do século XIX para o XX, a corrupção na recém-nascida república era o tom da vida pública. Tão privado era tratado o estado, que o ministro da fazenda sob Deodoro da Fonseca, Joaquim Murtinho, foi acusado por congressista de ter feito imprimir, na nota do dinheiro oficial, a imagem de uma das meretrizes mais conhecidas da capital Rio de Janeiro.
Nos espelhos atuais de nossa prática, a imagem refletida ruboriza ainda mais o justo, pois o enriquecimento a custo do erário e o desvio do dinheiro público permanece como selo de qualidade da brasilidade mais genuína. Pouquíssimas práticas nossas são tão permanentes e reiteradas nas capas de nossos jornais.
A vida de promotor de justiça é desalentadora e cobra um fardo de Prometeu, pelo menos aos de espírito grave, comprometidos, no que se refere a essa realidade. À função se desnudam os vermes mais famintos e suas práticas sorrateiras, na interminável dilapidação de todas as instituições públicas brasileiras.
Recente divulgação de alguns desses seres em ação, em bela e cruel reportagem do Fantástico da TV Globo sobre tentativas de desvio de dinheiro público de hospital de referência do Rio de Janeiro, não nos surpreende nem enoja mais do que a perene dobra no estômago decorrente de sabê-los diariamente, impunes, saciando-se feito glutão e se reproduzindo feito mosca.
E eles estão em todos os lugares. Tomam café conosco todos os dias, estão em nossos almoços, na clínica médica, nos assentamentos, nas lojas de serviço, nas árvores dos tucanos ou no céu das estrelas, nos gabinetes, com olhos vendados ou bem abertos, a procura sempre de mais.
Nós somos eles. Eles são nossa insinceridade, nossa bipolaridade moral (até tu, Demóstenes?), nosso passado e nosso presente de desvios reiterados e ensinados aos descendentes, nossa superficialidade, nossa covardia em enfrentá-los.
São tantos que, infelizmente, a impressão é a de que são a maioria. Tornar nosso estado verdadeiramente público, lídima instituição, ainda pertence ao porvir. E dependerá de forte luta para definir que orientação prevalecerá.
Terá que ser guerra de civilidade, guerra total, na qual não há armistício - ou se vence tudo ou se continua perdedor.
Alguns a estão travando, mas quase sós. É hora de socorrê-los.

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