quinta-feira, janeiro 29, 2015

A classe média, de que é possível

O silêncio do 'homem de bem'
Contardo Calligaris -
29/01/2015

DE SÃO PAULO

Anteontem, 27 de janeiro, foi o aniversário de 70 anos da libertação do campo de concentração de Auschwitz pelas tropas soviéticas. A data ficou como símbolo do fim do pesadelo, embora Auschwitz não fosse o primeiro campo encontrado pelos Aliados avançando rumo à Alemanha.

A Congregação Israelita Paulista comemorou o dia antecipadamente, no domingo. Os protagonistas da cerimônia eram os sobreviventes do genocídio que vivem entre nós –quase todos meninas e meninos quando entraram nos campos, logo antes do desfecho.

Grupo de prisioneiros se dirige ao crematório de Auschwitz, 
onde eles seriam assassinados

Foi especialmente bom estar lá, porque estamos atravessando dias obscuros. Como sempre em tempos de intolerância, o que fala mais alto é o ódio por quem é apenas um pouco diferente. Os sunitas (do Boko Haram) massacram os xiitas na Nigéria. A mesma fúria assassina aparece no Paquistão, na Síria ou no Iraque (com o dito Estado Islâmico). No conflito aberto do Oriente Médio, como na Europa, o futuro é incerto.

Claro, o horror pode ser a obra de fanáticos ou de "monstros", mas ele nunca é eficaz se não for acompanhado pelo silêncio e pela distração do homem comum –ou seja, o horror sempre pede alguma cumplicidade das ditas "pessoas de bem".

Domingo, ao longo da cerimônia, eu pensava em Tocqueville (1805-1859) e em Isaiah Berlin (1909-1997), que são, para mim, os dois grandes defensores dos valores democráticos e liberais –melhor: defensores do indivíduo, inclusive (e sobretudo) contra o Estado que ele mesmo inventa para conviver com seus semelhantes (e com seus diferentes).

Ambos, Tocqueville e Berlin, nunca esquecem que uma democracia pode facilmente vir a ser inimiga da liberdade de seus cidadãos. Exemplo recente e apropriado: Hitler chegou ao poder, se não propriamente por via eleitoral, por uma espécie de aclamação que poderia ser considerada "democrática".

Em geral, a lembrança desse fato (e de outros análogos) produz considerações sobre a burrice do povo, que não saberia escolher seus candidatos e se deixaria seduzir por populistas de cada tipo. Surgem assim propostas recorrentes para abolir o sufrágio universal e criar um censo eleitoral. Será que é certo mesmo que todos votem? O voto já foi privilégio de quem possuía bens e terras e de quem sabia ler. Por que não instituir um exame de conhecimentos gerais para poder votar?

A essas propostas recorrentes, respondo que, na verdade, pouco importa se o eleitor sabe ler, se ele "entende" de política ou se conhece as instituições da república.



Pouco importa, porque o que acaba com a democracia não é que o eleitor não sabe ou não entende; o que acaba com a democracia é que o eleitor se vende muito barato –e, geralmente, por medo de perder o nada que ele tem.

O último (imperdível) filme dos irmãos Dardenne, "Dois Dias, Uma Noite" (com Marion Cotillard, extraordinária), é a história de uma mulher cujos colegas aceitam que ela perca seu emprego porque, em troca, cada um deles receberá mil euros de bônus. A classe operária da minha juventude, se é que ela existiu, não existe mais. No seu lugar, no filme, há uma pequena (e terrificante) classe média, que está disposta a quase tudo para preservar seu status ou para melhorá-lo marginalmente (quando você assistir ao filme, lembre-se de que mil euros são três mil reais).


Você topa trocar um pouco de sua liberdade por mais segurança? Por exemplo, aceitaria poder ser parado e revistado a qualquer momento sem motivo legal, para que seja mais fácil identificar eventuais criminosos? Você é dos que hesitam antes de responder?

Pois bem: você topa trocar a liberdade dos outros (não a sua, desta vez) pela mesma segurança suplementar? Por exemplo, toparia que todos os ciganos fossem expulsos da França se, com isso, você fosse roubado com menos frequência, no metrô?

Você acha esse exemplo distante de nossa realidade? Passe uma manhã cedo na Polícia Federal de São Paulo, na Lapa, e veja a longa fila dos que pedem asilo. É só esperar, o Brasil terá seu momento-França.



O proletariado devia ser o pilar da justiça social, e a classe média, o pilar da liberdade do indivíduo. O proletariado acabou idolatrando a máquina burocrática do Estado. A classe média só se preocupa em não deslizar para baixo, e é sempre facílimo apavorá-la: para que renuncie à liberdade (a sua e a dos outros), basta murmurar em seu ouvido, por exemplo, que os estrangeiros tomarão seu lugar, seu emprego, e, claro, suas mulheres.

Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias).

Fonte: Folha de S. Paulo

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