terça-feira, outubro 23, 2012

A casta e a choldra

 A casta e a choldra
JOÃO BATISTA MACHADO
Jornalista ▶ jbmjor@yahoo.com.br
Novo Jornal /// Foto: Ilustração
Natal/ RN, 12 de julho de 2012

A chamada Constituição Cidadã foi assim batizada pelo presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulisses Guimarães, porque os direitos do cidadão estão acima dos deveres do Estado. Nas constituições anteriores ocorria justamente o contrário. Houve, então, uma inversão salutar dos conceitos.  Mas, infelizmente, foram criadas duas categorias diferenciadas de servidores: a casta e a choldra. Aos ricos, o banquete do erário. E aos pobres, as migalhas caídas da mesa.

Promulgada em 1988, privilegiou as carreiras de Estado dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, beneficiando com a vinculação dos seus vencimentos aos dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Concedido aumento a estes, concretiza-se o chamado efeito cascata sobre as folhas da União e Estados automaticamente. Os Estados do Nordeste são os mais atingidos com essa política de categorias privilegiadas em detrimento das reivindicações dos outros servidores destituídos de vinculações constitucionais.

Os contemplados por essa prerrogativa legal são ministros dos Tribunais Superiores, desembargadores federais, Ministério Público Federal e procuradores da República. Nos estados, desembargadores e juízes, Ministério Público estadual, procuradores, promotores, conselheiros e auditores dos Tribunais de Contas, além dos procuradores do poder Legislativo. Estas categorias diferenciadas terão sempre aumentos significativos. As outras, constituídas de médicos, professores, técnicos especializados e servidores comuns, não dispõem dos mesmos privilégios e se aposentam com salários modestos e defasados.

Historicamente, ainda convivemos com o rescaldo da cultura escravagista, quando existia o cidadão de primeira e segunda classe.

O senhorio e o escravo. A Constituição Cidadã, por exemplo, é mãe generosa para uma casta privilegiada e madrasta para a choldra, dentro dos limites da legalidade constitucional. Oficializamos a segregação entre os servidores públicos, em pleno Estado de Direito, numa agressão à cidadania, consequência da discriminação institucionalizada.

Portanto, o(a) sucessor(a) da governadora Rosalba Ciarlini poderá chegar ao governo com projetos ousados para o desenvolvimento do Rio Grande do Norte, mas, na realidade, sua função será gerenciar a folha de pessoal, em face dos aumentos em cascata das carreiras jurídicas dos três poderes, que ainda dispõem do auxílio moradia e outras concessões generosas. Estas ficarão com a maior fatia da receita e a outra parte servirá para pagar o restante da folha e manutenção precária do custeio. Recursos para investimentos públicos nem pensar.

Recentemente, a Assembleia Legislativa aprovou e a governadora sancionou projeto de lei enviado pelo Tribunal de Justiça, concedendo, sob pretexto de alinhamento defasado, um substancial aumento aos juízes das três entrâncias. Pegando carona no mesmo projeto, o Ministério Público procedeu da mesma maneira, embora sabendo que o Estado continua enquadrado nos limites prudenciais da Lei de Responsabilidade Fiscal quanto aos gastos com pessoal.

O governo tinha negado aumento a outras categorias, alegando falta de recursos financeiros, inclusive o plano de cargos da administração direta e indireta, até hoje engavetado. Resta saber qual será o comportamento diante do fato consumado do poder Judiciário e do MP, já que abriu exceção, atropelando a Lei de Responsabilidade Fiscal. Os servidores não contemplados nem com banho de cuia, quanto menos cascata, aguardam ansiosos novos posicionamentos da governadora.

O lobby dos advogados

Durante os trabalhos da constituinte, acreditavam observadores políticos que os sindicalistas seriam os grandes beneficiados com a nova cara que seria promulgada em 1988, livrando o país dos últimos resquícios do regime militar. Foram tantos os privilégios concedidos que o então presidente José Sarney alertou que o país poderia ficar ingovernável mediante gastança desenfreada sem a preocupação entre receita e despesa.

Preocupados com os avanços da esquerda, os conservadores criaram o centrão de tendência direitista, dividindo o debate entre dois polos opostos. Coube ao deputado Mário Covas coordenar as bancadas progressistas para evitar o pior. Enquanto essa polêmica dividia o parlamento, o lobby dos advogados suplantou as conquistas dos sindicatos e moldou a nova casta de acordo com interesses corporativistas. Ainda foi inserido na Carta Magna, a pedido da OAB, o direito do réu permanecer em liberdade até o processo transitado em julgado.

Entre outras conquistas, a mais benéfica ao Judiciário e algumas categorias do Executivo e do Legislativo foi o chamado efeito cascata, vinculando os vencimentos dos ministros do Supremo Tribunal Federal a toda magistratura da União e dos Estados. Aos poucos foram se ampliando e assegurando direitos ao Ministério Público Federal e estadual, além de outras instituições. O avanço do direito deles sobre a folha sufoca as chances de realinhamento dos modestos servidores.

Hoje, o efeito cascata é um sério complicador nas finanças dos estados mais modestos. Para atender à demanda sempre crescente, os governantes tendem a sacrificar investimentos e conter conquistas de outros funcionários sem amparo constitucional. Os futuros governadores, ou melhor, os gerentes das folhas de pessoal tentarão apenas manter o calendário de pagamento em dia. Se conseguirem o feito, já será uma expressiva conquista. E a quem não tem poder de barganha, como a choldra, só resta a opção eclesiástica: reclamar ao bispo.

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